Natureza no espaço e no tempo das Minas Gerais

No poente está o sertão; ao nascente, o mato dentro. O carrasco floresce mais adiante, pouco depois da mata seca. Desvendar a natureza de Minas Gerais é um convite a subir a serra, percorrer os vales, adentrar as grutas e mergulhar nos rios.

Reportagem: Raquel Coutinho
Fotos: Eduardo Gontijo

Para cada termo científico, há uma expressão popular muito antes conhecida e, quase sempre, mais ilustrativa. No oeste o Cerrado, ao leste a Mata Atlântica, enquanto a Caatinga estende-se na direção norte.

Ainda que Minas Gerais abrigue em seu vasto território ecossistemas distintos e bem caracterizados, é nas serras e em suas reentrâncias que se pode contemplar o encontro dessa biodiversidade no espaço e, com alguma imaginação, também no tempo. Há cerca de um bilhão de anos, o mar recuou para dar lugar às formações geológicas que originaram a ‘Grande Cadeia Ocidental’, como primeiro foi chamada a ‘espinha dorsal’ do Brasil pelo botânico francês Augustin de Saint-Hilaire.

Conjunto de serras que se estende do Quadrilátero Ferrífero à Chapada Diamantina, na Bahia, o Espinhaço combina atributos que lhe permitiram desenvolver plenamente os três biomas existentes em Minas Gerais: Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga.

Os dois primeiros figuram entre os 34 hotspots do planeta — biomas com maior biodiversidade e, ao mesmo tempo, mais ameaçados. Ambientes que abrigam paisagens arrebatadoras e delicadas formações, onde a vida floresce caprichosa e vigorosamente.

Caracterizada por uma composição muito antiga, cuja origem remonta de 600 milhões a alguns bilhões de anos atrás, a geologia de Minas Gerais é resultado da ação de forças que se encarregaram de revelar rochas formadas na parte inferior da crosta continental. Antônio Gilberto Costa, coordenador do Centro de Referência em Cartografia Histórica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que essas rochas, procedentes de um nível da crosta terrestre situado a muitos quilômetros de profundidade, afloram em consequência da erosão e do soerguimento ocorridos ao longo do tempo.

Três grupos de rochas coexistem na região: as mais comuns são as sedimentares, provenientes da deposição e compactação de materiais como arenitos e calcários; as ígneas, resultantes da cristalização do magma, a exemplo dos granitos; e as metamórficas, formadas a partir da transformação das duas primeiras, como no caso do quartzito.

“É possível encontrar manchas que indicam a presença de intrusões de magma, que chamamos de diques. Há também locais com sedimentos lacustres e outros com indícios que apontam a existência de depósitos eólicos formados por dunas. Essas estratificações ficam marcadas no solo e são testemunhos da origem e da história geológica de Minas Gerais”, destaca Gilberto Costa, sobre a provável presença de vulcões, lagos e mar no território do estado há milhões de anos atrás.

Suas características mineralógicas e químicas permitiram ao solo mineiro adquirir significativa importância econômica. Jazidas de ouro, ferro e manganês, rochas ornamentais como granitos, xistos e quartzitos, além de pedras semipreciosas como topázios, berilos e águas marinhas exemplificam a riqueza mineral que inspirou a escolha do nome do estado.

Nas construções das vilas e comarcas mais importantes das Minas Gerais, como Vila Rica (Ouro Preto), Serro do Frio, Sabará, Rio das Velhas e Rio das Mortes (Tiradentes), Gilberto Costa aponta o emprego de quartzitos e xistos diversos, cangas, esteatitos (pedra-sabão), serpentinitos, arenitos, conglomerados e, mais raramente, gnaisses e granitos.

1,5 mil km, 53 municípios e 39 UCs

Assim como a composição do solo, a disponibilidade de água, as diferenças de altitude e as condições climáticas determinam a cobertura vegetal e a formação dos biomas. Para se compreender a amplidão do mosaico de riquezas que configura a natureza de Minas Gerais, cabe antes projetar o olhar sobre sua mais representativa amostra: a Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço (RBSE).

Miguel Andrade, chefe do Departamento de Ciências Biológicas da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), explica porque o Espinhaço ocupa uma porção estratégica em termos biogeográficos. “Em relação à natureza, existe diferenciação em todos os sentidos: latitudinal, onde há expressões mais úmidas principalmente no sul, com tendência ao ressecamento seguindo na direção norte; longitudinal, apresentando de um lado o Cerrado e de outro a Mata Atlântica; e também em função da variação altimétrica, que tem início nas matas de encosta e sobe derivando até chegar aos campos rupestres, entre 900 e 1.200 metros, e aos campos de altitude, acima dos 1.200 metros”, argumenta.

Cinquenta e três municípios mineiros estão situados ao longo dos 1,5 mil quilômetros de extensão da RBSE, reconhecida em junho de 2005, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em sua porção sul, destacam-se jóias do período colonial, como Ouro Preto, Mariana, Catas Altas, Santa Bárbara e Barão de Cocais. Alguns quilômetros ao Norte, as serras da Piedade, Calçada, Moeda e do Curral são os trechos mais influenciados pela urbanização da região metropolitana de Belo Horizonte.

A Estrada Real segue o curso do Espinhaço, alcançando o Parque Nacional da Serra do Cipó. Em Conceição do Mato Dentro, a Cachoeira do Tabuleiro verte águas cristalinas do alto de seus 273 metros. Próximo ao povoado de Candeias, o Cânion do Peixe Tolo é mais uma visão arrebatadora. Sucedem-se as belezas: Congonhas de Minas, Serro, Santo Antônio do Itambé.

Dentro dos limites de Diamantina, Patrimônio Cultural da Humanidade, encontram-se Biribiri, São Gonçalo do Rio das Pedras e Milho Verde, distritos que conquistaram espaço entre os atrativos turísticos de Minas com seu charme e hospitalidade. Antes de chegar à Bahia, a Serra do Espinhaço projeta-se sobre o Vale do Jequitinhonha, notório por sua densidade folclórica, artística e cultural.

Em Minas Gerais, a RBSE conta com 12 unidades de conservação de proteção integral: Parques Nacionais da Serra do Cipó e das Sempre-Vivas; Parques Estaduais do Itacolomi, da Serra do Rola Moça, do Rio Preto, do Biribiri, do Pico do Itambé e da Serra do Intendente; Estações Ecológicas Estaduais do Tripuí e de Fechos; e Parques Naturais Municipais do Ribeirão do Campo e do Salão de Pedras. Outras 27 unidades de conservação são também contabilizadas na área da reserva.

Corredor ecológico

“No meio das montanhas tantas de Minas há semeadas planícies que, de tão altas, parecem teto e, de tão amplas, fim não ter. Delas, uma que chamam serra, mas é também planiço, chão parado, é o Cipó. Lá, carrasqueiras, árvores, rios, caminhos e paredões, retorcem-se, dobram-se e entornam-se encorpando o solo e afugentando a monotonia. E para os quatro cantos é chão semeado de santo: Santana, São Sebastião, Santo Antônio, Conceição, Senhora do Porto… Só podia, por ser planície, de tão bela, sagrada.” Cástor Cartelle, prefácio do livro Mamíferos da Serra do Cipó (2003)

O Espinhaço alterna altitudes de 700 a 2.072 metros — o Pico do Sol, na Serra do Caraça, é considerado o ponto mais alto —, com diferenças mínimas de largura, que variam de 50 a cem quilômetros. A serra conta com exuberantes paisagens, formadas por despenhadeiros, picos, vales, paredões, grutas, cachoeiras e cânions.

A porção Sul do maciço divide as águas de três grandes bacias hidrográficas: a do Rio Doce encontra-se a leste, área de domínio da Mata Atlântica; no oeste está a bacia do São Francisco, onde predomina o Cerrado; já a do Jequitinhonha figura mais ao norte, junto à Caatinga. É precisamente no majestoso Vale do Travessão, na Serra do Cipó, que os rios Doce e São Francisco despedem-se para cumprir, cada qual a sua maneira, a tarefa de levar sobrevivência aos rincões das Gerais.

Associados a altitudes acima de 900 metros, com plantas rasteiras e solos rasos, pedregosos ou arenosos, os campos rupestres são considerados uma fitofisionomia (ou subgrupo) do Cerrado, que se destaca pela delicadeza, complexidade e alto nível de endemismo — existência de espécies de flora e fauna que ocorrem somente naquela porção do mundo. Condições topográficas acidentadas possibilitam maior isolamento, o que torna tais regiões geradoras de espécies, principalmente de anfíbios, aves e plantas.

Quatro das 30 variedades de aves endêmicas do Cerrado estão restritas aos campos rupestres da Serra do Espinhaço: o beija-flor-de-gravata-verde, o joão-cipó, o papa-moscas-de-costas-cinzentas e o canário-rabudo.

A Serra do Cipó é também chamada de ‘jardim do Brasil’, por abrigar cerca de 1.600 variedades de flores. A canela-de-ema-gigante, endêmica da região, pode atingir até seis metros de altura. Nos ramos mais altos crescem outras plantas, como a microorquídea Constantia cipoensis, também exclusiva da região.

Das 538 espécies vegetais ameaçadas de extinção em Minas Gerais, 81 estão na Mata Atlântica, 19 na Caatinga, 73 no Cerrado e 351, que correspondem a 67% do total, ocorrem nos campos rupestres.

Símbolos de vida

Paepalanthus sp é uma espécie de sempre-viva escolhida como símbolo da Reserva da Biosfera da Serra do Espinhaço. As sempre-vivas, como o próprio nome sugere, têm a capacidade de se desenvolver em ambientes pouco fecundos e manter o viço mesmo depois de colhidas e secas.

A Serra do Espinhaço abriga 70% das espécies de sempre-viva conhecidas no mundo. A facilidade de acondicionamento e transporte, no entanto, ameaça sua sobrevivência por tornar mais propícias práticas extrativistas para fins de artesanato e comercialização. O Parque Nacional das Sempre-Vivas foi criado em 2002, na região de Diamantina, com o objetivo de conter a redução das populações de plantas na natureza.

Famoso morador do Santuário do Caraça, Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), o lobo-guará conserva hábitos solitários e noturnos. Alimenta-se de aves, pequenos mamíferos, roedores, répteis, insetos e frutos. Tem membros longos, pelagem vermelho-dourada e uma crina negra que se estende até as primeiras vértebras lombares.

Insetos e anfíbios do Espinhaço também despertam grande interesse pela existência de variedades endêmicas de abelhas, sapos, libélulas, mosquitos e outros. A perereca-de-pijama, rara e curiosa, é um anfíbio encontrado unicamente na Serra do Cipó.

A Estação Ecológica do Tripuí, em Ouro Preto, foi criada especialmente para conservar o invertebrado Peripatus acacioi. Considerado um verdadeiro fóssil vivo por conservar as mesmas características há 500 milhões de anos, acredita-se que esse animal primitivo seja o ancestral comum de anelídeos e artrópodes, fato o torna a mais antiga espécie em vida no planeta.

Biomas, mosaico natural

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o termo ‘bioma’ pode ser entendido como “um conjunto de vida (vegetal e animal) constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação contíguos e identificáveis em escala regional, com condições geoclimáticas similares e história compartilhada de mudanças, o que resulta em uma diversidade biológica própria”. Essa biodiversidade, por sua vez, representa o total de gens, espécies e ecossistemas de uma região.

Mata Atlântica, embaraçoso mato dentro

“Roça-se, queima-se e amplia-se, tirando-lhe tudo o que pode servir de embaraço”, indicava padre André Antonil, em 1711, ao plantador de cana que escolhesse sua área de cultivo. Esse ‘embaraço’ castigou também tropeiros e bandeirantes que se atreviam a desbravar o interior do Brasil. Era a própria Mata Atlântica — o mato dentro — àquela época considerada obstáculo ao desenvolvimento da economia e da civilização.

Quando os primeiros europeus chegaram ao país, em 1500, esse bioma cobria aproximadamente 15% do território brasileiro. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, a cobertura vegetal nativa da Mata Atlântica foi reduzida a 27% de sua área original, dos quais apenas 7% são remanescentes florestais bem conservados.

Com clima predominantemente quente e úmido, o bioma é composto por um conjunto de formações florestais e ecossistemas associados que inclui as florestas ombrófilas densa, mista (mata de araucárias) e aberta, florestas estacionais semidecidual e decidual, os manguezais, as restingas, os campos de altitude, os brejos interioranos e encraves florestais do Nordeste.

Suas árvores atingem, em média, de 20 a 30 metros de altura, com folhas largas e perenes. A vida é intensa nas copas, que se misturam e formam uma camada contínua, que restringe a penetração da luz. Essa cobertura cria estratificações vegetais com microclimas típicos da mata, sempre úmidos e sombreados.

Terra Brasilis

“Parece que já é tempo de se atentar nestas preciosas matas, nestas amenas selvas, que o cultivador do Brasil, com o machado em uma mão e o tição em outra, ameaça-as de total incêndio e desolação. Uma agricultura bárbara, ao mesmo tempo muito mais dispendiosa, tem sido a causa deste geral abrasamento. O agricultor olha ao redor de si para duas ou mais léguas de matas, como para um nada, e ainda não as tem bem reduzido a cinzas já estende ao longe a vista para levar a destruição a outras partes. Não conserva apego nem amor ao território que cultiva, pois conhece mui bem que ele talvez não chegará a seus filhos.”
José Vieira Couto, Memória sobre a Capitania de Minas Gerais, 1799

Mesmo reduzida e muito fragmentada, estima-se que a Mata Atlântica brasileira ainda abrigue cerca de 1,6 milhões de espécies animais, em sua maioria insetos. No total, são contabilizadas 1.020 espécies de aves e 250 de mamíferos, sendo endêmicas 188 e 55, respectivamente. O número de répteis chega a 67, além de 134 serpentes e nada menos do que 340 anfíbios. O endemismo da flora alcança índices de 53,5% para árvores, 64% para palmeiras e 74,4% para bromélias.

Algumas possuem ampla distribuição geográfica, podendo ser encontradas também em outros biomas, como as onças, alguns papagaios, queixadas, corujas, gaviões e outros. Pássaros como garça, tié-sangue, tucano, araras, beija-flor e periquitos; répteis como jararaca, jacaré-do-papo-amarelo e cobra-coral; anfíbios como sapo cururu, perereca-verde e rã-de-vidro; e mamíferos como macacos, preguiças, jaguatiricas, cachorros-do-mato e porcos-do-mato são exemplos de animais da Mata Atlântica.

O bioma abriga 350 das 396 espécies de animais consideradas oficialmente ameaçadas de extinção no Brasil. Das 160 aves que figuram na lista (Instrução Normativa MMA nº 03 de 27 de maio de 2003), 118 ocorrem na Mata Atlântica, das quais 49 são endêmicas, assim como as 16 espécies de anfíbios indicadas. Também pertencem ao bioma 38 das 69 variedades de mamíferos ameaçadas, sendo 25 endêmicas. Entre as 20 espécies de répteis, 13 ocorrem na Mata Atlântica, sendo dez endêmicas.

De madeira avermelhada como brasa, o quase extinto pau-brasil foi o principal alvo de extração dos primeiros colonizadores que aportaram no país, então conhecido como Terra Brasilis. Também características da Mata Atlântica, outras madeiras de valor foram exploradas até a beira da extinção, como a tapinhoã, a sucupira, a canela, a canjarana, o jacarandá e a peroba.

Cerrado, do tamanho e maior que o mundo

“O sertão é confusão em grande demasiado sossego…”, escreveu João Guimarães Rosa, nas palavras do jagunço Riobaldo, sobre seus gerais sem tamanho, formosos, que correm em volta e desentendem de tempo, as águas limpas das cabeceiras, o pintassilgo que canta sim, o céu poente de sol e o luar que põe a noite inchada, as friagens e a neblina.

Esse mesmo Cerrado que inspirou o clássico Grande Sertão: Veredas (1956) e as fitofisionomias (ou subgrupos) a ele associadas — áreas florestais como matas ciliares e de galerias e capões, campos limpos e sujos, campos rupestres, campo cerrado, cerradão, mata seca, veredas e várzeas —manifestavam-se originalmente em 50% da cobertura vegetal de Minas Gerais.

A bióloga Tudy Câmara, diretora técnica da empresa Bicho do Mato — especializada em meio ambiente —, afirma que ainda não foi possível dimensionar com precisão a biodiversidade do Cerrado. “Apenas a partir dos anos 90 os pesquisadores dedicaram-se à tarefa de conhecer melhor esse bioma. Mas um contexto com tamanha riqueza vegetal, base da alimentação de muitos animais, e microambientes que permitem o desenvolvimento de diversos invertebrados, indica o grande potencial do Cerrado para a geração de espécies”, aponta Tudy.

No livro Jambreiro: fauna e flora (2006), a bióloga explica a importância dos invertebrados para a manutenção da vida: “… pois são responsáveis pela polinização de várias espécies de plantas, pela dispersão de sementes e pela reciclagem das partes vegetais mortas, cujos resíduos são novamente absorvidos pelos vegetais vivos, completando o ciclo que possibilita a renovação das florestas. Os invertebrados são ainda fonte de alimento para mamíferos, aves, répteis, anfíbios e peixes, assumindo vital importância na cadeia alimentar”.

Essa savana brasileira, o Cerrado, abrange as zonas geográficas do Alto Paranaíba, Alto e Médio São Francisco, Médio Jequitinhonha, Campos das Vertentes, Vale do Aço, Paracatu e Triângulo. De clima tropical sazonal, apresenta períodos chuvosos no verão e de seca no inverno, quando ocorrem eventuais incêndios espontâneos. A temperatura média anual é de 25° C, podendo chegar a picos de quase 40°C na primavera e mínimas abaixo de 10°C nos meses de junho e julho. A precipitação média varia de 1.200 a 1.800 mm anuais.


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