Ousadia musical

 

Entrevista

Paulo Santos

Ousadia musical

Na casa do percussionista Paulo Santos, tambores, marimbas e chocalhos dividem o espaço com trilobitas, flautas de PVC e outros instrumentos inusitados. “Este aqui tem um som incrível. Ganhei de presente do John Bergamo, em 1987”, conta Paulo, enquanto toca o galão de água que ele nomeou de Bergamo, em homenagem ao percussionista estadunidense. Além de um dos fundadores do grupo de música instrumental Uakti, famoso pelas composições originais e pela utilização de instrumentos pouco convencionais, Paulo Santos acumula projetos que dialogam com outras plataformas artísticas, como o vídeo e o cinema. Nesta entrevista, ele analisa as singularidades da música mineira, elogia os artistas da nova geração e fala sobre projetos que tem em mente e que incluem a produção de um novo CD.

Por Juliana Afonso
Fotos Cezar Felix

 — O senhor se lembra da sua primeira memória musical ou de quando surgiu seu interesse pela música?

 — Algumas coisas foram marcantes. Meu pai compunha sambas, e lá em casa era um lugar de muita música. Ele sempre surgia tocando a caixinha de fósforos. Também me lembro de um grupo de senhores que tocava choro. Eu era menino, devia ter meus 9 ou 10 anos de idade, e comecei a tocar um pandeirinho com eles. Mas o que mudou mesmo a minha vida foi quando meu irmão mais velho me mostrou um disco do Naná Vasconcelos [percussionista pernambucano], o Amazonas (1973). Eu queria tocar igual a ele. Eu sempre digo isso porque o Naná mudou a vida de muita gente, inclusive a minha.

 — Quando o senhor começou a estudar música?

 — Fui fazer faculdade de História na UnB (Universidade de Brasília) e, dentro do curso, eu podia escolher disciplinas em outras faculdades; foi quando comecei a fazer teatro e a experimentar mais a linguagem musical. Com a ditadura militar, a coisa apertou em Brasília, e, em 1975, eu voltei para Belo Horizonte. Um ano depois, fui para o Festival de Inverno de Ouro Preto e fiz uma oficina com o Rufo Herrera (bandoneonista e compositor argentino). No final, ele me disse “a gente continua em Belo Horizonte, na Fundação”. Foi quando eu comecei a fazer aula de música.

— Como foi a sua trajetória? O senhor começou na percussão?

— Na Fundação de Educação Artística, o meu primeiro instrumento foi o clarinete, que eu adorava. Também tocava os instrumentos criados pelo Marco Antônio Guimarães, no Grupo Oficcina Multimédia, que envolvia música, teatro, dança e textos. A música instrumental estava no auge; era a época de artistas como Egberto Gismonti e Hermeto Pascoal. Um dia, o Marco Antônio disse: “vamos montar um grupo de música”. Foi quando surgiu o Uakti. Éramos Marco Antônio, Artur Andrés, Décio Ramos e eu. Então, eu larguei o clarinete e comecei a ter aula de percussão, para tocar os tambores, as marimbas e as tablas. Todos nós também tocávamos na Orquestra (Orquestra Sinfônica de Minas Gerais). Foram anos e anos estudando muitas horas por dia.

— A música instrumental encontra uma série de obstáculos para ampliar o alcance. Como o Uakti conseguiu chegar ao grande público?

— A música do Uakti era muito experimental, até sermos chamados pelo Milton Nascimento para gravar o disco Sentinela(1980). O Marco Antônio precisou descobrir mecanismos para afinar todos os instrumentos em escala europeia, o que nos permitiu tocar ao lado de instrumentos convencionais. Daí nasceu uma linguagem mais próxima das pessoas. O Milton estava no auge da carreira, com um contrato incrível na gravadora Ariola, e colocou no acordo que a gente também deveria fazer álbuns. Fizemos três LP nessa fase: Uakti — Oficina instrumental(1981); Uakti 2(1982) e Tudo e todas as coisas(1984). A gente já tinha um público, mas, depois do trabalho com o Milton, nós ganhamos projeção nacional. Alguns consideram sorte, mas eu não trabalho com esse termo. A sonoridade do Uakti era mesmo única. A gente estudava muito cada instrumento, cada nota musical, cada arranjo. Tudo era pensado e exaustivamente executado. Alcançamos um nível de excelência muito grande. Somos o único grupo que viveu tanto tempo fazendo música com instrumentos diferentes.

— Essa qualidade fica evidente quando se verifica a quantidade de convites e parcerias que vocês tiveram.

— Sim, muitas pessoas nos deram força. O grupo de jazzManhattan Transfer nos convidou para participar de um álbum e fazer uma turnê pelos Estados Unidos. Em seguida, fizemos diversos trabalhos com o Philip Glass (compositor estadunidense), inclusive apresentações nas Olimpíadas de 2004. Também gravamos trilhas sonoras para o cinema com grandes diretores, como o Fernando Meirelles, e composições para o Grupo Corpo (companhia mineira de dança contemporânea).

— Como foi trabalhar em diálogo com outras plataformas artísticas, como a dança e o cinema?

— O Uakti produz uma música muito visual, e sempre tivemos essa relação com outros meios artísticos. Nossa primeira gravação foi uma participação na trilha sonora do filme Cabaré Mineiro(1979), do mineiro Carlos Alberto Prates Correia, ao lado do Tavinho Moura, compositor do Clube da Esquina — foi ele, inclusive, que nos apresentou para o Milton Nascimento. Também fizemos a trilha do filme Kenoma(1997), da diretora Eliana Caffé. Eu fiz muitos trabalhos paralelos nesse sentido, como trilhas para o videoartista Eder Santos e para o diretor Rafael Conde. Recentemente, terminei um trabalho para o filme O lodo, do diretor Helvécio Ratton, e vou finalizar as trilhas para os filmes A casa do girassol vermelho, do Éder Santos, e A queda, do Diego Rocha.

— Com o fim do Uakti, o senhor passou a se dedicar mais a outros projetos?

— Quando o Uakti acabou, foi uma surpresa. Eu tinha 60 anos e já estava passando por um processo de renovação da minha carreira. Logo nessa fase, gravei um disco com a banda de rockHurtmold, o Curado(2016). Depois veio o convite da banda Iconili, para a gravação de algumas músicas. Com o tempo, as pessoas começaram a me procurar mais, e descobri que a moçada mais nova estava interessada no meu trabalho, pois eu continuei tocando instrumentos incomuns, levando essa linguagem de timbres diferentes adiante. Também gravei um segundo LP com a cantora Maria Rita Stumpf, algumas músicas infantis com o grupo Palavra Cantada e composições autorais com o grupo Curupaco — em algumas delas, a minha filha canta e a minha esposa, Josefina Cerqueira, toca. Até o momento, eu tenho um álbum, o Música para performances de Eder Santos(1999), mas um dos meus projetos agora é fazer um novo CD. É uma coisa que me cobram muito, e sinto que, agora que eu tenho mais liberdade, posso me focar mais nesse projeto.

 — O senhor disse que gosta de encontrar novas pessoas e toca com bandas da nova cena musical, como o Hurtmold e o Iconili. Como o senhor enxerga essa nova geração?

— O nível de conhecimento mudou muito. Na minha época, tinha essa coisa de “eu sou percussionista”, “eu sou guitarrista”, e hoje não, hoje os jovens tocam todos os instrumentos. A tecnologia ajudou a dar um passo nessa direção. Você tem acesso a instrumentos feitos do outro lado do planeta, a muitas sensações, e isso abre as perspectivas sonoras. Quando eu comecei a tocar clarinete, por exemplo, não tinha como comprar palheta, porque ela vinha da França. Palheta de oboé, então, nem pensar! Você tinha que pegar o bambu e aprender a fazer. Hoje você vai à internet, e tem quilos de palhetas francesas, da melhor qualidade, que chegam à sua casa em um embrulho lindo. Isso aumenta a velocidade na música e abre muito os horizontes.

— Por outro lado, parece que o acesso à internet criou certa padronização…

— Tem isso, sim. É o que a gente vê hoje, com o sertanejo universitário. Muitos artistas querem tocar esse tipo de música porque ela vende milhões. Mas tem um pessoal que não está envolvido nessa “chapação”, que busca uma coisa diferente. A nova geração da cena musical de BH é muito produtiva e promissora. Tem a Júlia Branco, com um trabalho fortíssimo; o Graveola, que faz um som incrível; a família Mitre, meninas novas que tocam muito; o Rafael Martini e o Kristoff Silva, que têm uma levada musical bem particular. O espaço hoje é mais restrito, e fica difícil sobressair no oceano de ofertas. Ser novidade é cada vez mais complexo, mas eu vejo muita coisa linda, e essa evolução é fruto da liberdade, liberdade para tocar todos os instrumentos, para experimentar.

 

— O senhor acha que tem algo que faz a música de Minas ser diferente?

— Acho. A música barroca que veio da Europa teve uma fase muito forte em Minas. Os mulatos daqui compunham cantos religiosos com profundidade e grau harmônico como os brancos de lá. Você vê essa bagagem nas composições dos mineiros, como no Clube da Esquina, em que a base da composição é um espaço harmônico, uma viagem harmônica. A geração mais nova também tem essa pegada. Acho que outra particularidade é essa coisa de mineiro ser desconfiado. Ele faz, pensa, refaz, pensa de novo, aí sai e vê uma montanha, então volta e fala “vou pensar mais um pouquinho” (risos). Isso tudo faz brotar uma musicalidade diferente.

— O senhor comentou sobre religiosidade. Como a cultura de matriz africana se manifesta na música produzida hoje?

— A raiz africana está em todas as nossas músicas regionais, no congado, no maracatu, no boi, no coco, até no barroco mineiro. Da música indígena, temos a influência do canto, principalmente dos cantos de trabalho, e, da música negra, temos influência dos toques, seja de banzo, que é um toque triste, seja de festejo, que é um toque alegre. Essas coisas foram passadas por gerações. Hoje, a música brasileira é marcada pela síncope, pelo contratempo. É uma forma muito nossa, que se manifesta no axé, no samba, no samba reggae, e é fruto dessa mistura.

— Ao longo de quase 50 anos de carreira, o senhor tocou com importantes nomes da música nacional e internacional. Qual foi o encontro mais marcante?

— Houve vários. O primeiro contato com o Milton Nascimento foi supermarcante. Conheci o Milton por meio do meu irmão, que me deu um disco, e passei a sonhar em tocar com ele um dia. Então, é um sonho realizado. Outro encontro superespecial foi com o Naná, minha inspiração. Logo ficamos amigos e fizemos turnês juntos. Ele era muito brincalhão. Uma vez ele me ligou e falou assim: “Paulinho, e aí, tudo bem? É o seguinte, cara, eu fiquei pensando aqui, a gente tem que buscar os nossos sonhos, sabe? Se você sempre sonhou com uma coisa, vai atrás”. E eu, quase chorando: “cara, que lindo, você tem toda razão…”. Aí, ele falou: “pois é, Paulinho, inclusive, cara, se você não achar em uma padaria, vai ter em outra”. E a gente ria até não poder mais. O Philip Glass também me marcou muito. Nunca vi um artista do nível dele ser tão simples. Ele não tinha aquelas divisões entre “equipe” e “celebridade”.

— O ambiente artístico leva para o caminho da vaidade?

— Leva. O Uakti sempre foi muito tranquilo nisso. Quando você recebe muita força, você ajuda também. Toda vez que um jovem me chama para gravar, eu vou sem o menor problema. Eu sei do meu papel, não tenho dúvida sobre o que o Uakti alcançou e sobre o lugar aonde eu cheguei; por isso busco ajudar quem chega, com humildade e tranquilidade. E eu gosto muito da meninada, tenho bloco de carnaval, dou aula de percussão. Essa relação me deixa mais jovem.

— O senhor concorda que a percussão se fortaleceu em Belo Horizonte a partir da consolidação do carnaval?

— Belo Horizonte mudou. Tem uma BH antes do carnaval e uma BH depois do carnaval. Tem um monte de blocos, de todas as linguagens e ritmos, com muita gente, muitas mulheres tocando. Nos blocos de que eu faço parte, a quantidade de mulheres é enorme. A percussão se fortaleceu muito. Hoje todo mundo tem um instrumento, um surdo, uma alfaia, um bumbo. BH mudou demais! Antes a gente ia para a rua à revelia do estado. Lembro a primeira vez que a gente saiu com o Bloco du Seu Pai e Filhas de Gaby, em 2013: éramos quatro nos instrumentos e 20 atrás, puxando as pessoas, parando o trânsito com o próprio braço. Agora tem mais apoio, a prefeitura viu esse potencial, até porque é muita grana: só no ano passado, mais de 4 milhões de pessoas passaram o carnaval aqui.

— Qual é o fruto desse movimento?

— Eu acho que o carnaval, assim como tantas outras manifestações e linguagens, consegue afrontar um pouco o que tem se falado sobre a cultura. A minha posição hoje é de luta constante contra essa ignorância, contra o nível de estagnação em que tentam colocar a arte. As pessoas que hoje estão nos ministérios, nas secretarias, nos espaços de poder, não têm capacidade para gerir a área. Elas tentam impor uma proposta conservadora que não leva a nada. Cabe a nós, artistas, falar sobre isso, levar isso para a rua, com o carnaval, por exemplo. Precisamos desvincular a arte desse pensamento conservador. A arte não se prega. A arte é livre.

— Sendo um artista de Minas Gerais, como o senhor avalia o potencial do estado para o turismo?

— Minas tem tudo, só não tem mar (risos). Eu tenho uma casinha em São Gonçalo do Rio das Pedras, um lugar que tem tudo em termos de oferta turística: natureza, cachoeiras lindas, pessoas maravilhosas, artesanato incrível. Aí, você viaja para Araçuaí e encontra grupos vocais lindos; ótimas cachaças em Salinas, uma arquitetura barroca fantástica em Ouro Preto, complexos de águas termais no Sul do estado… Eu acho que Minas tem um dos maiores potenciais turísticos do Brasil. Infelizmente, a Vale conseguiu colocar a gente em um padrão de susto muito grande. O turista agora pensa onde não tem barragem antes de decidir o destino dele. Barão de Cocais, Congonhas e o distrito de Macacos: cidades lindas em que você pode explorar o potencial turístico, mas que são ameaçadas por barragens. Em vez de explorar o minério até a última escama, o empresariado mineiro deveria investir em turismo e cultura, que também geram renda. A gente tem um território gigante e pouco lucro nesse setor. É preciso ter mais investimento.

A sonoridade do Uakti era única. A gente estudava cada instrumento, cada nota musical, cada arranjo. Tudo era pensado e exaustivamente executado. Alcançamos um nível de excelência muito grande.

A música barroca que veio da Europa teve uma fase muito forte em Minas. Os mulatos daqui compunham cantos religiosos com profundidade e grau harmônico como os brancos de lá.

 A minha posição hoje é de luta constante contra essa ignorância, contra o nível de estagnação que tentam colocar a arte. Precisamos desvincular a arte desse pensamento conservador. A arte não se prega. A arte é livre.

 

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