Santuário do Bom Jesus de Matozinhos

A cidade de Congonhas, na região central de Minas Gerais, abriga um dos mais valiosos monumentos do planeta, o Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos. Gênios como Aleijadinho e Mestre Ataíde não só criaram verdadeiras obras-primas como também promoveram uma grande junção da arte de Minas Gerais no século XVIII. As obras do santuário, Patrimônio Mundial da Humanidade, são admiradas por muitos, porém nem todos dão a importância necessária a esse tesouro de inestimável valor — que já sofreu atos de vandalismo e continua sofrendo com a falta de planejamento urbano. Enquanto isso, a antiga Congonhas do Campo resiste ao tempo.

Reportagem: Juliana Afonso
Fotos: Jean Yves Donnard

Existem cidades que vivem de fama. Outras que vivem de imagens. Congonhas jaz sob uma única paisagem: a do Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos. De fato, não há quem passe pela cidade sem visitar o local. Uma, duas, três, inúmeras vezes. Não importa o quão cansada esteja a pessoa. No pé do Morro do Maranhão é possível ver todo o conjunto da obra. É quando a vontade de chegar lá em cima cresce de forma rápida.

O conjunto arquitetônico e paisagístico local é formado por uma praça com seis capelas que remontam os passos da Paixão de Cristo, um espaço aberto em frente da igreja onde estão colocados os doze profetas e uma basílica que leva o nome do santuário. Mestres do barroco, como Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, e Manuel da Costa Ataíde, foram responsáveis por erguer o lugar que hoje é considerado o maior conjunto de arte colonial do país. Não é à toa que a imagem do local estampa blusas, cartões postais, selos e até embalagens, uma tentativa dos comerciantes de vender mais — e por que não? — mostrando o que a cidade tem de melhor.

Incêndio

Mas há algum tempo as obras que compõem o conjunto do santuário correm consideráveis riscos de sofrerem danos. O tema voltou a ser debatido com fervor depois do incêndio que destruiu duas lojas do centro histórico da cidade em agosto de  2010. Os bombeiros não estavam preparados de forma adequada e o fogo se alastrou mais do que deveria. Do outro lado da rua, está uma das seis capelas que representam a Via Crucis. A poucos metros dali estão os profetas em pedra sabão esculpidos por Aleijadinho e, mais a frente, a igreja símbolo da cidade.

Como todas as obras arquitetônicas ao redor do mundo, o Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos está sujeito ao tempo. Intempéries naturais como chuva ácida e enchentes podem, pouco a pouco, pôr fim a verdadeiras obras de arte. Mas no caso de Congonhas, o problema está ainda mais embaixo.

Ação da natureza

Em toda e qualquer cidade do mundo, há uma série de questões que rondam a preservação de monumentos históricos. Mas em Congonhas há ainda um agravante: grande parte das esculturas está ao ar livre, ou seja, mais fortemente expostas a fatores naturais.

O metalurgista e pesquisador do Centro de Pesquisa e Restauração dos Museus da França, Marc Aucouturier, afirma que a poluição atrapalha a conservação desses monumentos. “Nas cidades, a poluição é causada principalmente pelos gases provenientes do escapamento dos carros, que formam aquilo que chamamos de ‘crosta negra’.” Esses gases são responsáveis por corroer os materiais. Segundo o assessor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em Minas Gerais (Iphan-MG), Glayson Nunes, “a poluição é um problema histórico na cidade, principalmente depois da concentração de mineradoras no entorno”.

Mas as obras de Congonhas merecem uma atenção especial, pois grande parte delas foram feitas em pedra-sabão, uma rocha composta de talco e de outros minerais como magnesita e quartzo. Devido à sua composição, esse tipo de rocha tem baixa dureza e se torna ideal para a realização de esculturas e peças de decoração. A particularidade do material inclui também maior suscetibilidade aos fatores externos — e, portanto, à sua conservação —, uma característica da pedra não conhecida nos séculos passados.

Cooperação técnica e científica

Para avaliar as características das obras esculpidas em pedra criou-se, em 1991, o projeto Ideas, que visava a pesquisa sobre a degradação de materiais pétreos em monumentos históricos. O projeto fazia parte do acordo de cooperação técnica e científica entre o Brasil e a Alemanha. Os pesquisadores passaram cerca de cinco anos estudando o material com o objetivo de comparar os processos de alteração da pedra nos dois países —uma vez que elas estavam sujeitas a diferentes condições climáticas —, criar uma metodologia de avaliação desses processos e determinar formas de conservação e restauro de tais objetos.

Os pesquisadores do projeto Ideas chegaram a alguns pontos chave. O grupo não pôde concluir, porém, que a poluição era a culpada pela degradação das esculturas. Em compensação, perceberam que um dos tipos de desgaste que os profetas sofriam dizia respeito à colonização de microorganismos, particularmente a ação de liquens, algo comum em um país tropical, portanto, de clima quente.

Aplicação de biocida

Depois de oito anos de estudo, eles encontraram um biocida (substância que inibe ou impede o crescimento de microorganismos) derivado do ácido benzóico, conhecido por sua ação na conservação de alimentos. A aplicação foi feita de forma minuciosa. Os organismos que se alimentavam do produto morriam e se desprendiam da pedra. A grande vantagem do biocida era o fato de que, com ele, não foi necessário realizar nenhuma ação mecânica ou interferir de forma manual nas esculturas.

A solução pareceu eficaz. Ainda assim, é difícil pensar na aplicação de produtos químicos para o restauro das peças uma vez que o que é considerado bom hoje pode não ser bom amanhã. “Em Ouro Preto há uma imagem dentro de uma das igrejas barrocas na qual foi aplicado um composto de cimento em cima para fazer um teste. Hoje, a imagem está se deteriorando”, exemplifica o artista plástico, escritor e pesquisador especialista em Aleijadinho, José Efigênio Pinto Coelho. Essa experiência mostra que qualquer interferência com produtos químicos pode causar efeitos indesejáveis. Segundo Marc Aucouturier, a única resposta para diminuir o envelhecimento é a realização de uma limpeza periódica a cada 15 ou 20 anos.

Culpa de quem?

Mas se a poluição não é a responsável pela degradação dos monumentos históricos da cidade, e os liquens fazem parte de processos naturais , de quem é a culpa? “Todas as estátuas dos profetas apresentam manchas, riscos e perfurações. A principal é a de Jeremias, que tem o rosto cheio de buracos”, exemplifica Glayson. De fato, os problemas dos monumentos de Congonhas estão mais ligados à ação humana do que à reação do meio ambiente.

Essa conclusão se torna ainda mais evidente com a realização de análises sobre as características da pedra-sabão. O artista plástico José Efigênio Pinto Coelho elogia a qualidade do material de Congonhas. “Ela não está caindo, não está porosa, não está se alterando. É muito melhor que a de Ouro Preto, inclusive. Apesar de macia, a pedra-sabão é resistente a alta temperatura e ao tempo. O ar da cidade não é tão agressivo e a reação ácida pouco corrói.” Ele compara o material da cidade ao de países como Portugal. Lá, a pedra está virando pó, pois o calcário usado nas obras da região reage com os poluentes da gasolina.

O medo aqui é outro. “No Brasil falta segurança não só para as pessoas, mas também para a preservação dos objetos. Alguém pode pichar, arrancar um pedaço ou mesmo dar um tiro”, argumenta José Efigênio. De fato, as esculturas já foram despedaçadas e pichadas. Para se ter uma ideia, os moradores da cidade costumavam colocar fogos de artifício na mão dos profetas no dia do réveillon. “Isso aconteceu em uma época em que nem se conhecia a importância das obras ou como se preservar isso”, lembra Ronaldo Lourdes, coordenador do Programa Monumenta em Congonhas —programa de financiamento ao patrimônio histórico que tem como meta revitalizar os principais conjuntos urbanos do país.

Restaurações

A ação do tempo e, principalmente, do ser humano, são agravantes para a preservação dos monumentos históricos de Congonhas. O Programa Monumenta, criado em 2002 pelo governo federal, é uma tentativa de ajudar os governos municipais e estaduais a preservarem seu patrimônio por meio de financiamento. Congonhas é uma das quatro cidades mineiras que teve sua proposta aceita pelo governo.

As ações do projeto começaram em 2002 e, de lá para cá, uma série de atividades já foram realizadas: restauração da igreja São José, construção da praça São José (anexo à igreja), restauração do Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos, restauração da estação ferroviária, drenagem e o paisagismo no entorno das capelas dos Passos de Cristo, restauração das esculturas de cedro de Aleijadinho (dentro das capelas), implantação de redes de luz subterrâneas e restauração da pavimentação da ladeira no morro do Maranhão.

O coordenador do Programa Monumenta em Congonhas, Ronaldo Lourdes, conta que há ainda um projeto, em fase de licitação, que prevê a implantação de sistema elétrico e lumino-técnico nas capelas dos passos. “O convênio com o Monumenta tem data final para 4 de dezembro, mas se esse último projeto for contratado, o convênio pode ser prorrogado por mais alguns meses”, afirma.

Desde que as estátuas dos doze profetas foram pichadas, a prefeitura organizou um sistema de vigilância 24 horas. Guardas municipais ficam instalados em pontos estratégicos no adro da igreja para impedir que alguém se aproxime ou cometa algum ato de vandalismo. Desde o ano passado foi instalado também um sistema de vigilância nas capelas do morro do Maranhão.

Conscientização

O que mais preocupa na preservação dos monumentos de Congonhas não é a falta de conhecimento científico. Nem mesmo a ausência de conhecimento da população sobre a importância dos mesmos, uma vez que o Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos foi considerado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) ainda em 1985. O que falta à população é saber mais, ter conhecimento, sobre a imensa  importância destas verdadeiras obras-primas.

Nesse sentido, o ato de preservar começa com a conscientização das crianças acerca da importância da cidade e de seus patrimônios. Ronaldo Lourdes afirma que existem vários trabalhos na linha da preservação patrimonial promovidos pela Secretaria de Educação da cidade, além da atuação de algumas escolas nesse rumo.

Outra ação concreta é a construção de um espaço cultural, o Memorial Congonhas — Centro de Referência do Barroco e Estudos da Pedra. A iniciativa partiu do Iphan e sua construção vem sendo realizada pela Unesco e pela Prefeitura Municipal de Congonhas. O investimento total foi de R$ 15 milhões. As obras, que começaram em 2009, prometem terminar ainda esse ano.

“O Memorial Congonhas surge como um espaço destinado à valorização, compreensão e preservação desse conjunto”, afirma o assessor do Iphan, Glayson Nunes. O local será sede de exposições e de um centro de estudos e pesquisas sobre o barroco e a arte e a conservação de monumentos em pedra.

Solução controversa

No início das obras do Memorial Congonhas, surgiram boatos de que o centro seria também um museu. E entre as peças mais importantes do seu acervo estariam nada mais nada menos do que os doze profetas de Aleijadinho. As esculturas originais seriam retiradas do adro da igreja do Senhor Bom Jesus do Matozinhos e expostas no Memorial. No lugar delas, do lado de fora, estariam réplicas perfeitas.

Desde então, a discussão sobre o tema parece não ter fim. Alguns são contra, outros a favor. Ronaldo Lourdes diz ainda não ter uma opinião formada, mas entre preservar a réplica ou o original, ele prefere ficar com o original. “A preservação não precisa acontecer necessariamente dentro de um museu, mas poderia haver um esforço de encontrar um material ou uma forma de preservá-los.”

Glayson afirma que o Memorial não foi construído com o objetivo de guardar as esculturas originais de Aleijadinho. “O que o Memorial promete é a confecção de modelagem dos doze profetas, medida considerada urgente e essencial para a recomposição em caso de danos às esculturas”, afirma. Dois deles, inclusive, já estão prontos. Os moldes foram feitos em silicone e em meio eletrônico.

Preservar a intenção do artista

O artista e pesquisador José Efigênio é cético. “Já fizeram um local pra guardar as peças. Eu acho isso complicado porque a beleza dos profetas é o conjunto. Se você coloca uma réplica você perde 90% da força do artista e enfraquece o patrimônio de Minas.”

O metalurgista e pesquisador francês, Marc Aucouturier, afirma não ter uma opinião concreta sobre as obras de Congonhas. “Emocionalmente, tenho tendência a pensar que as obras originais têm o direito de viver a vida ao qual se dedicou seu criador, ou seja, de ficar onde elas foram criadas e serem admiradas como elas são, mesmo correndo risco de envelhecimento — que também é parte da sua história”, opina.

José Efigênio compartilha da mesma visão. “É preciso preservar a intenção do artista. E Aleijadinho fez aquilo para quem? Para a população pobre e carente, para os aleijados que pediam esmola, para salvar a vida dessas pessoas”, afirma. Nesse sentido, a maior lição de Congonhas seria recuperar um pensamento de valorização da estética como fonte de cura? “A dificuldade está na necessidade em preservar o invisível. Aquele espaço é tão bonito e você se sente tão bem que qualquer mal estar passa.”

Obras-primas da humanidade

“Não foi Aleijadinho que escolheu Congonhas, foi a cidade que o elegeu como artista.” As palavras de José Efigênio captam a aura local. A cidade realmente nos pega de surpresa. E nem o maior nome do barroco mineiro conseguiu escapar… Ainda hoje, quem chega ao Santuário do Senhor Bom Jesus do Matozinhos e se propõe a observar com afinco o conjunto da obra conhece o sentimento. Parece que o espaço nasceu para aquilo.

O povoamento da cidade se deu nos primeiros anos do século XVIII, quando mineradores famintos se instalaram na região e acabaram encontrando ainda mais ouro. As condições insalubres de trabalho tiravam a vida de muitos homens. Uma das vítimas foi o português Feliciano Mendes, que fez uma promessa ao Senhor Bom Jesus de Matozinhos para recuperar a saúde perdida. Foi atendido e em 1757 começou a construção de uma igreja. “O ponto que Mendes escolheu é maravilhoso. Está no alto da montanha e cercado por montanhas. Ali o homem se eleva, ele está realmente em contato com Deus”, opina José Efigênio.

Encontro de artistas geniais

As obras da igreja foram crescendo e com o tempo outras pessoas se tornaram igualmente responsáveis pela sua concepção. Mendes procurou os maiores artistas de Minas Gerais. Entre eles estavam os pintores João Nepomuceno, mestre Ataíde, Francisco Xavier Carneiro e o escultor Aleijadinho. Ali não é só uma capela, é uma grande junção da arte do estado no século XVIII. José Efigênio compara: “é como se a gente chamasse Oscar Niemeyer, Cândido Portinari e Burle Marx para participarem da mesma obra”.

Foi uma junção perfeita pois os artistas se encontravam também em suas melhores fases, em especial Aleijadinho. “Ele inicia sua carreira em Ouro Preto. Quando vai para Congonhas está na sua fase mais plena. Ali ele coroa toda a sua arte”, afirma José Efigênio. Não é por menos que o conjunto formado pela igreja, pelos doze profetas em tamanho real e pelas capelas da paixão de cristo é considerado o maior conjunto de arte colonial do país. Foi tombado pelo Iphan como patrimônio histórico nacional ainda em 1939 e considerado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco em 1985.


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