Solidão e paixão em tempos conectivos

Artigo

Euclides Guimarães

Ficar, namorar, casar… palavras com significados claros, conhecidos até mesmo por quem nunca viveu nada disso e facilmente reconhecíveis por convenções genéricas. A despeito de cada namoro, casamento ou afair ser único, o que diferencia tais relações é o grau de compromisso a que se submetem os sujeitos nelas envolvidos: conexões fortuitas movidas pelo desejo, combinando baixo grau de compromisso com a alta conectividade, “ficar” é o extremo conectivo de uma régua qualitativa cujo outro extremo é o casamento. Este, de tão compromisso, pode chegar a prescindir da conectividade — como era comum acontecer com velhos casais já sem sexo, quase sem diálogos, mas cujos cônjuges permanecem entrelaçados até a primeira morte.

Não sabemos quem inventou o amor, mas o amor inventou a humanidade. Quase nada sabemos do tempo primordial em que um certo bicho começou a se comportar como gente, mas gosto da ideia de que tudo teria começado quando alguém descobriu o prazer de estar junto com outro alguém. No pacote complexo das sensações do estar-junto-com o sentido da sobrevivência foi aos poucos cedendo lugar ao sentido da vida. Nesse sentido amor nada tem a ver com sobrevivência, embora pareça cada vez mais difícil sobreviver ao desamor.

Denso, embora abstrato, forte, embora etéreo, grandioso, embora prefira se manifestar pelo ínfimo, totalizante, embora incompleto, o amor é, como nas palavras de Rushdie, “uma toalha de praia estendida sobre areia movediça”.  Relação obrigatoriamente intensa, traz consigo a marca do mistério, da agonia e do êxtase que perfazem a condição humana.

Quando a mente é segmentada entre razão e sensibilidade, o amor é posto como propriedade da sensibilidade, mas o sensível nem sempre é perceptível. Amores que vêm do ninho como aquele que enlaça mãe e filho, por exemplo, sabemos senti-los, mas de forma automática e abstrata. No caso do amor romântico ao sensível se acopla o sensorial e, com isso, o que a mente sente reflete de imediato no corpo. Entre taquicardias, arrepios, ereções, fluidificações e outros choques, sensibilidade e sensorialidade se fundem na forma da sensualidade. Além disso é um amor que brota, ganha existência e também pode sumir de uma hora para outra, por isso pressupõe um jogo de

(re)conquista. Conquistar é bom, mas o essencial desse jogo é a manutenção do que foi conquistado. O amor acaba, mas quer ser inacabável.

Quando amores acabam é quase certo que alguém vai sofrer, pois é quase impossível que as energias sensíveis que moram dentro de cada um se alterem simultaneamente e na mesma direção. Considerando que o amor romântico geralmente tem dois protagonistas, é quase inevitável que alguém ame mais, ou se emprenhe mais que o outro na relação.  O amor vem em ondas, como a vida e como o mar, portanto se sujeita às marolas da história.

 Toda sociedade se ergue sobre um pacto. É preciso aceitar convenções e regras para se viver em sociedade. Se o amor é tão instável, pois passível de se transformar em seu oposto a qualquer instante, trata-se então de um problema político dos mais elementares.

Na história da Civilização Ocidental o amor romântico já foi condenado pela estigmatização do erotismo. No machismo extremo das civilizações que entendem a mulher como propriedade do homem, exigindo dela submissão e fidelidade, e no machismo específico de uma civilização que entendeu os prazeres do corpo como vetores demoníacos do pecado, só mesmo sucessivas revoluções poderiam levar à exaltação do amor romântico. Acontece que revoluções aconteceram e o questionamento das tradições judaico-cristãs veio trazendo, aos poucos, novas formas de valorização do lado conectivo desse tipo de relação.

Com a queda do tabu que associa prazer físico a pecado, “ficar” fica cada vez mais liberado e o próprio corpo já não é objeto de uma legislação de controle que abarque a atração sexual. Não que não exista mais uma política de controle do corpo, mas seus ditames atuais condenam outras coisas, como a obesidade, o desleixo e até mesmo a ausência de desejo sexual. Trata-se agora de uma sociedade de hiperindivíduos, onde comunidades e companhias não são mais algo que temos desde o nascimento; ao contrário, tornam-se algo a ser conquistado.

Isso significa que o amor romântico passou a ser exaltado no bojo de um mesmo processo histórico que eleva a necessidade do amor próprio. Cada vez mais abandonados à própria sorte, sujeitos contemporâneos, sem peias morais para se conectar, fazem da conexão a mais básica das necessidades. Daí a importância das redes sociais e da telefonia móvel : estar conectável se torna a única defesa cotidiana contra a nunca tão ameaçadora solidão. No entanto, o que parece ser o grande diferencial do sentido da vida é mesmo o amor, porque ficar é bom, mas o que as pessoas realmente estão procurando é por alguém que as possa completar. Em tempos do “ficar” o que se procura mesmo é um compromisso que, não podendo mais ser assegurado por convenções machistas, só pode se assentar sobre o desejo mútuo e constantemente renovável do amor romântico. Em tempos de ficar, importante mesmo é namorar.

O perigo maior parece ser a impossibilidade de compreender claramente até onde o amor é mesmo amor e até onde é medo da solidão. O machismo agoniza, mas os crimes passionais praticados por homens inconformados com o desamor de “suas mulheres” nunca foi tão preocupante. Sim, o  machismo agoniza, mas podem-se presenciar casos de mulheres que, por medo da solidão, tornam-se ainda mais submissas do que minha bisavó. São facetas do novo formato do mais velho drama da condição humana.

Euclides Guimarães é sociólogo e professor na PUCMinas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e na FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura).

Cada vez mais abandonados à própria sorte, sujeitos contemporâneos, sem peias morais para se conectar, fazem da conexão a mais básica das necessidades. Daí a importância das redes sociais e da telefonia móvel.

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