Ivo Faria
Por Cacaio Six
Fotos Cézar Félix
Há 22 anos, Ivo Faria chefia a cozinha do Vecchio Sogno Ristorante, a consagrada casa de propriedade dele — reconhecida em Belo Horizonte como uma grande referência nas cozinhas brasileira, italiana e internacional. Dono de várias premiações — ele também participa de festivais nacionais e internacionais de gastronomia na qualidade de chef convidado e consultor —, Ivo começou as 14 anos na cozinha, como aluno do curso técnico do Senac. Nesta entrevista, o cozinheiro Ivo Faria, como ele faz questão de se identificar, analisa a gastronomia mineira, explica o que significa ser chef de cozinha e afirma que Belo Horizonte precisa aprimorar a vocação como centro de turismo de negócios e eventos.
— Na opinião do senhor, é possível afirmar que existe hoje o crescimento ou a evolução da gastronomia típica de Minas Gerais?
— A gastronomia em Minas Gerais evoluiu muito de uns 15 anos para cá. De fato, houve um grande salto, principalmente porque as pessoas passaram a ter interesse pela gastronomia, muito em função da popularização do tema pela mídia, sobretudo pela televisão e pela internet, incluindo as redes sociais e até os aplicativos. São vários programas e reality shows sobre o assunto e que agradam muito, alcançam grande audiência. Essa realidade, um fenômeno mundial, também repercute aqui em nosso estado — talvez porque Minas Gerais jamais deixou de lado a tradição de sempre manter uma boa mesa, uma cozinha típica de excepcional qualidade. Veja que até nas pequenas cidades as pessoas começaram a procurar ampliar os conhecimentos de modo a valorizar a sua cozinha. Os festivais gastronômicos que se espalharam por Minas tiveram (e ainda têm) uma significativa parcela de responsabilidade nessa popularização.
Veja o caso do Festival de Tiradentes: no primeiro ano, em 1995, na primeira vez em que eu participei, foram poucos participantes. E mais: aquele evento atraiu muito pouca gente, na verdade, não havia uma alma viva à noite nas ruas de Tiradentes. Hoje, é outro contexto, o festival é uma referência internacional de qualidade e tornou-se um imenso atrativo turístico. O interesse mudou radicalmente, as pessoas têm muito prazer em comparecer — tanto para usufruir dos melhores pratos como também para participar ativamente, aprender e ampliar os conhecimentos, como é o caso dos profissionais que desejam empreender.
— Houve, então, uma profissionalização da gastronomia.
— Sim, houve. Entretanto, é preciso dizer o seguinte: se a gastronomia em Minas evoluiu sob esse aspecto relacionado, digamos, a uma reconhecida profissionalização, por outro lado, ela também afundou num buraco muito profundo.
— Como assim?
— Antes eu pegava o carro e viajava para a Serra do Cipó especialmente para comer uma comida caseira maravilhosa. Eu fui várias vezes a Sabará para saborear uma deliciosa refeição completa e também à Cabana do Antenor, em Barbacena, por causa daquele feijão delicioso. Hoje em dia isso acabou, pois surgiu a comida a quilo, uma grande predadora da nossa cultura gastronômica. Os antigos restaurantes de comida caseira que existiam nas pequenas cidades, nos bairros das maiores cidades ou no Centro de BH faziam uma excelente comida caseira, hoje só oferecem comida a quilo. Seria como fechar as portas de todos os bistrôs da França. Acontece atualmente uma grande contradição: enquanto, de um lado, as pessoas estudam, se informam, se especializam para produzir uma boa gastronomia, de outro, a comida caseira e aquele PF especial estão praticamente extintos. Não existe mais aquela refeição comercial, preparada com os nossos produtos básicos, com os ingredientes colhidos diretamente dos quintais. A couve, a alface, tomate e os tantos tipos de legumes. A nossa típica refeição não mais existe, acabou. A comida a quilo é predadora de uma gastronomia saudável, de uma gastronomia típica.
— Nesse caso, qual seria a receita para resgatar a gastronomia típica mineira?
— O que falta na cozinha mineira é valorizar a própria vocação, a sua especialidade, a sua característica peculiar. Cada região tem que valorizar o seu produto típico. É como acontece em Portugal: cada região tem o seu produto típico, que é muito valorizado nos cardápios. Aqui ainda não existe esse apego. É justamente esse apego que faz do produto típico um atrativo turístico, um produto turístico. Frequentemente, eu sou procurado por empresários — que investem na abertura de um hotel ou de uma pousada no interior — à procura da indicação de um bom cozinheiro. Eu sempre respondo o seguinte: procure alguém da região, que conheça os ingredientes locais, e explore isso. Prepare e ofereça a comida típica da sua região. Observe o caso de Tiradentes. A cidade faz isso muito bem.
— Na prática, como fazer para valorizar os produtos típicos de cada região?
— Se é uma cidade que tem muito chuchu, valorize-o; se tem muita taioba, valorize-a, assim como a abóbora, a mandioca, o frango e o porco caipiras. Incentive os produtores locais, leve os produtos típicos para a mesa. Veja o meu caso: eu cismei de incluir no cardápio dois produtos típicos que eu conheço desde criança, os vegetais maria-gondó e a capiçoba. Fui então ao Mercado Central de BH, e tinha um ou dois maços de cada. Comprei todos. Passei, então, a procurar sempre no mercado. Às vezes tinha alguns maços e às vezes não encontrava nenhum. Porém, ensinei aos meus alunos como aproveitar bem a capiçoba e a maria-gondó. Algum tempo depois, já existia uma boa oferta de ambos no Mercado Central, e isso ocorre até hoje. Portanto, foi criada uma demanda. Ou seja, se você cria uma demanda para um produto típico de uma determinada região, isso vai estimular a produção e, é claro, gerar renda. É exatamente isso que o francês faz: se ele cultiva uma pimenta típica de uma região, é para esse produto ser vendido no mundo inteiro. É exatamente o que nós não fazemos no Brasil. Se existe uma abóbora maravilhosa em uma determinada região, por que não explorar esse produto? Não sabemos fazer isso. Veja o caso de uma fruta típica, a pitomba, nativa no Norte de Minas. Se eu quiser fazer um molho de pitomba aqui, eu não vou encontrar a fruta facilmente, mas ela existe em grande quantidade por lá. Outro caso é o da seriguela. Eu fico de olho, procuro e, quando acho, compro todo o estoque e congelo. Se essa fruta fosse valorizada, se ganhasse uma demanda nas regiões onde ela é farta, ela se transformaria em um atrativo. Poderia ser aproveitada para suco ou para uma caipirinha ou ainda para molhos. Fazer esse produto se tornar um hábito alimentar é o primeiro passo para que ele seja reconhecido como uma iguaria gastronômica. É preciso pegar um produto típico como a seriguela e transformá-lo: é possível fazer doces com diferentes notas de acidez; pode-se misturar a fruta com outros ingredientes e acrescentá-la a outros pratos, além de, como eu disse, preparar diferentes tipos de molhos. Araxá não ficou famosa com os seus doces típicos? Viçosa não é conhecida como a terra do doce de leite? Ponte Nova tem a goiabada que gera uma muito boa renda. Se um município tiver uma boa abóbora, por que não produzir um delicioso doce de abóbora? Talvez ele possa vir a ser reconhecido no Brasil inteiro. A valorização da nossa gastronomia passa pela valorização dos nossos produtos típicos. É fundamental saber como usá-los com qualidade, produzir, gerar consumidores e, finalmente, criar uma cultura gastronômica típica. Nada disso será possível, porém, se as pessoas não valorizarem os produtos típicos das suas regiões — e terem muito orgulho deles.
— O senhor se referiu aos seus alunos. Como o senhor avalia o ensino da gastronomia em Minas Gerais?
— Todos aqueles, sobretudo os jovens, que procuram se preparar e estudar enfrentam dificuldades com relação ao ensino. Os nossos cursos são muito simples, não são como na Europa. Lá estuda-se o curso básico, em seguida é preciso fazer estágios nas cozinhas, e só depois o estudante parte para um curso superior. Aqui, como faculdades observaram esse filão de demanda para o ensino da gastronomia, o estudante já começa por cima, ao invés de iniciar em uma escola de preparação básica. Às vezes, a pessoa nem trabalhou numa cozinha e já está fazendo pós-graduação em gastronomia.
— O senhor é muito requisitado para participar de festivais gastronômicos e demais eventos no exterior. Como o senhor apresenta a gastronomia mineira?
— Jiló, por exemplo, se eu oferecer ali, escrito no cardápio do restaurante, eu vou ter dificuldade em vender o prato. A pessoa não abre o coração, tem preconceito. Quando eu vou para a Europa, eu levo jiló. Eu digo que eu sou o embaixador do jiló. Eu também levo mandioca, batata-baroa em forma de purê, linguiça e ainda levo alguma fruta como a pitanga, que tem um sabor diferenciado, além de geleia de jabuticaba, para fazer um ótimo molho. Carrego uma mala lotada de produtos, exclusivamente para preparar pratos e para apresentar nos eventos. A receptividade é muito grande, as pessoas querem conhecer os produtos, querem descobrir novos sabores, degustar. Os chefs estrelados querem experimentar, têm enorme curiosidade. Aquele toque brasileiro e mineiro é muito especial, é apreciado e respeitado. Já fiz feijoada lá fora; levo vários tipos de farinha, uso muito feijão, levo milho de canjica e milho branco — que eles não têm lá. Eu transformo os ingredientes para que eles gerem os melhores pratos. Agora mesmo eu escrevi um prato que vou fazer com carne de sol, canjica branca, molho de jabuticaba com sagu (bolinhas de mandioca feitos com café preto). Então, em síntese, é assim que acontece: a base da melhor gastronomia é valorizar a gastronomia da sua terra, aquela que você sabe fazer.
— Após conquistar tanto reconhecimento em sua atividade, inclusive colecionando vários e muito importantes prêmios, como o senhor se define hoje como profissional da cozinha?
— Na verdade, eu ainda não cheguei a um lugar específico. A gente nunca para. Eu nunca parei. Se eu disser que eu cheguei ao ápice, então eu estacionei; você para no tempo. Ninguém chega. Você chega ao ápice em termos de satisfação pessoal, de estar feliz com a sua família, de estar satisfeito com o seu negócio, se sua atividade é bem-sucedida e se você é feliz com o seu trabalho. Gastronomia é como o universo. A gastronomia está sempre em expansão. A cada dia surge uma grande novidade. Hoje, você pesquisa na internet, e tem sempre um chef fazendo uma coisa nova. Se você parar, você fica para trás. Então, se eu fizer um cardápio hoje, daqui a alguns anos, ele não vai ter o mesmo conceito. Ele muda, evolui. Mesmo aqueles pratos consagrados que você assina requerem toques de novidades, senão, vão ficar ultrapassados. O sabor vai continuar o mesmo, mas existe a forma de montar o prato. Isso sempre muda, está em constante transformação. Você encontra uma louça mais bonita e quer montar o prato mais bonito. O molho que eu comia há 15 anos tinha uma textura diferente da de agora. O paladar muda, as pessoas vão se aprimorando. Eu tenho que adequar o meu prato ao momento, ao aqui e agora. Às vezes, eu quero mais brilho ou menos redução dentro de um molho. Há alguns anos usavam-se no Brasil 250 gramas de açúcar; atualmente, eu não uso mais porque o paladar do brasileiro aprecia hoje um produto menos doce. O europeu — na época em que eu estudei na Suíça — usava 200 gramas de açúcar, e o brasileiro, 250. Hoje, na Europa usam-se 150 gramas. Antes se usava banha, hoje usa-se óleo ou azeite. E existem alguns pratos que não levam mais óleo nem azeite. Na cozinha, o mesmo prato de há 10 anos, com os mesmos ingredientes, tem hoje um resultado final completamente diferente. Esse prato evoluiu. A gastronomia evolui rigorosamente, a cada dia.
— E quanto ao mercado dos restaurantes, da boa gastronomia, houve grandes mudanças desde a época em que o senhor fundou o Vecchio Sogno?
— Eu sempre me pergunto o seguinte: o que muda? O que te faz mudar? Em BH, em 1995, quando eu inaugurei o Vecchio Sogno, só frequentavam os restaurantes as pessoas mais velhas. A maioria não tinha esse hábito. As famílias costumavam receber em casa. Não existiam muitos restaurantes. Hoje, eu tenho como clientes os filhos dos meus primeiros clientes, e eles já comem diferente dos pais. Portanto, os filhos e os pais têm que ser atendidos conforme as exigências de cada um. São públicos com exigências diferentes. Meu público, que era 75% acima de 40 anos, hoje ele é 70% abaixo de 50 anos. Tem ainda outra grande parte de público na faixa entre 20 e 40 anos. O meu desafio é adequar o meu restaurante a esses públicos. Além do mais, eu tenho que adequar também a minha forma de enxergar a gastronomia e outros detalhes de muita importância, como a postura do garçom, a decoração da casa (vou fazer uma mudança agora), a “empratação”, pois é fundamental adequar de tempos em tempos a leveza dos pratos. É assim que eu devo (e preciso) pensar, planejar e executar.
— Mas o senhor tem que garantir a sua tradição, correto?
— Sim, eu tenho que garantir a minha tradição na forma de manter o meu estilo, a minha marca pessoal dentro da cozinha. Existem diferentes aspectos dentro do meu trabalho que se transformaram em uma importante referência dentro da cozinha. O meu tempero, a forma de preparar cada prato, de atender a clientela… Essas referências precisam ser mantidas — e aprimoradas a cada dia. As pessoas conhecem os meus pratos. Cada cozinheiro tem o seu toque pessoal, apesar de todas as transformações.
— Belo Horizonte evoluiu a ponto de ser considerada como um importante polo de gastronomia?
— BH evoluiu menos que os outros grandes centros, mas poderia ter evoluído muito mais. Nesse aspecto, BH encolheu. Toda grande cidade tem que se mostrar para o mundo, seja como um centro de negócios, como um polo de turismo ou ainda como uma cidade universitária, um centro de ensino e de pesquisa. Uma grande capital precisa ser uma relevante prestadora de serviços. BH era considerada como um grande centro, em cujo entorno orbitavam importantes cidades industriais, como Betim e Contagem, além das cidades do Quadrilátero Ferrífero, centros mundiais da mineração. Os escritórios das grandes empresas eram aqui, era tudo centralizado na capital. Pois bem, essas cidades hoje não precisam mais de Belo Horizonte. Todas elas ganharam uma infraestrutura própria, com hotéis e restaurantes. Os escritórios das grandes companhias foram embora. BH perdeu demais. Parou no tempo. Qual é agora o produto que a capital mineira tem pra vender para o Brasil e para o mundo? É preciso que Belo Horizonte aprimore a sua vocação como um importante centro prestador de serviços. Para isso, é preciso que tenhamos os melhores centros de convenções do Brasil, capazes e preparados para promover grandes negócios. A maior vocação de BH é se tornar um competitivo centro de turismo de negócios e eventos e, como consequência, incrementar a sua identificação como um forte polo prestador de serviços. Mas a dura realidade é que existe um projeto para construir um Centro de Convenções para 7 mil pessoas que não sai do papel.
— Como o senhor vê os chefs que apresentam programas na TV?
— Acho que tem espaço para todos: para os showmen, para quem queira ensinar ou para quem deseja investir nessa área e se tornar um chef de restaurante. Se o faz com competência, dedicação e capacidade, eu aprovo. Mas, por outro lado, tem muita gente aí que faz um pequeno curso e se acha um chef de cozinha.
— Então, o que é ser um chef de cozinha?
— Em primeiro lugar, você tem que ser um cozinheiro. Se você é um cozinheiro, você vai carregar o seu ofício, a sua profissão para a vida toda. A minha profissão não é chef de cozinha, eu sou um cozinheiro. E, para ser um cozinheiro, você precisa ser muito mais que competente. Chefiar uma cozinha é outra atividade completamente diferente. Chefiar não é só cozinhar. Chefiar é saber administrar, é saber criar, é saber lidar com pessoas, é saber ensinar, ter amplo conhecimento técnico de toda a cozinha e é necessário dominar diferentes questões ligadas à economia e à administração — porque cozinha é uma empresa. Dentro de um hotel, por exemplo, uma cozinha mal administrada pode quebrar todo o empreendimento. Quem administra a cozinha é o chef. Ele administra gente, administra os produtos — desde o momento da escolha do melhor produto até a compra —, elabora o cardápio. O chef tem obrigação de saber se o produto está na época, se o produto vai lhe dar retorno, se tem bom preço e se ele, chef, tem equipe suficiente para preparar aquele cardápio — se a sua cozinha estará adequada — proposto ao restaurante. Quem administra tudo isso é o chef. Ele tem que adequar cada equipamento, cada mão de obra, em cada departamento e escolher as pessoas certas de acordo com a sua proposta. É algo muito profundo. É preciso primeiro ser um ótimo cozinheiro para depois vir a se tornar um chef de cozinha. Muitas vezes a pessoa se acha um chef, mas não é cozinheiro, e, aí, não funciona. Definitivamente, isso não dá certo. Chef é aquele que consegue chefiar uma cozinha em qualquer ambiente ou lugar — seja uma cozinha com cinco pessoas ou outra com 30 ou 50 profissionais. Não é fácil e não é simples ser um chef de cozinha.
A nossa típica refeição, o prato feito, a refeição comercial, a comida caseira, não existe mais. A comida a quilo é predadora de uma gastronomia saudável, de uma gastronomia típica.
Na cozinha, o mesmo prato de há 10 anos, com os mesmos ingredientes, tem hoje um resultado final completamente diferente. Esse prato evoluiu. A gastronomia evolui rigorosamente, a cada dia.
A maior vocação de BH é se tornar um competitivo centro de turismo de negócios e eventos e, como consequência, incrementar a sua identificação como um forte polo prestador de serviços.