A mais antiga maria-fumaça em operação no Brasil nunca parou de trabalhar, desde o ano 1881 — quando foi inaugurada a “Estrada de Ferro d’Oeste”. Hoje, o pequeno trecho turístico dessa via férrea — que já fez parte de uma ferrovia que chegou a atingir 684 km de extensão —, entre Tiradentes e São João del-Rei, é percorrido em cerca de 50 minutos de uma belíssima viagem que resgata uma grandiosa história. Por essa razão, é um grande atrativo turístico: só no ano de 2017, mais de 135 mil pessoas viajaram na maria-fumaça entre as duas cidades históricas.
Por Rita de Podestá
Fotos Marcos Amend e Cezar Felix
Quem anda na locomotiva a vapor que liga Tiradentes a São João del-Rei (e vice-versa) nem sempre sabe do longo caminho que existe por trás dos 12 km de trilhos que restaram. Acontece que o pequeno trecho já fez parte de uma ferrovia com mais de um século e que chegou a atingir 684 km de extensão. Desde então, muitos trilhos sumiram, muitas estradas surgiram, mas a maria-fumaça mais antiga em operação no Brasil — apelidada de “Bitolinha” por ser uma das poucas no mundo que ainda rodam em bitola de 76 centímetros — nunca parou de trabalhar.
Mais uma vez, foi a descoberta de ouro e de diamante pelos portugueses o catalisador dessa história. A exploração levou à ocupação do território que viria a ser transformado na capitania de Minas Gerais, gerando um intenso movimento populacional e, com isso, o desenvolvimento dos futuros povoados e vilas. Acampamentos viraram casas, capelas foram erguidas para depois virarem igrejas, e a agricultura e a pecuária começaram a ser necessárias para que a capitania formasse a própria rede de abastecimento interno. Mas, ainda assim, era preciso trazer alguns suprimentos, que vinham pelo mesmo caminho por onde o ouro era escoado até os portos do Rio de Janeiro. O que só era possível graças aos muares — burro e mulas —, que levavam no lombo as riquezas do solo para depois trazer o que fosse preciso para abastecer a região.
Se o movimento de carga era do litoral para o interior, com a chegada de dom João VI ao Rio de Janeiro, em 1808, a situação precisou se inverter. A vinda da corte causou uma grande expansão demográfica na cidade. Com isso, além de pedras preciosas, a capital começou a requisitar outros itens de subsistência, como algodão, açúcar, café, fumo, marmelada, banha, queijo, couro, gado, galinhas e porcos.
Trilhos uniam o Brasil
O litoral, então, iniciava pleno progresso, levando o interior do país a também se modernizar. A demanda exigiu mudanças, e, na virada do século XIX para o século XX, um dos principais obstáculos para o desenvolvimento de Minas Gerais ainda era a deficiência de meios de transporte modernos. Por isso, as elites e as autoridades brasileiras e mineiras começaram a discutir sobre a necessidade de criar ferrovias que alcançassem o interior. São João del-Rei, que já possuía atividades comerciais com a capital da colônia em meados dos anos setecentos, se movimentou: queria ampliar ainda mais as atividades que mantinha.
A ferrovia veio no fim do século XIX. A Estrada de Ferro Oeste de Minas (Efom) foi criada por meio da concessão provincial de 1872, com o nome “Estrada de Ferro d’Oeste”. O trecho Sítio-São João del-Rei, com a extensão de 100 km (abrangendo as estações de Barroso, São José e Tiradentes) foi inaugurado em 1881, com a presença do então imperador, dom Pedro II. Devido ao esforço realizado pela comunidade local de São João del-Rei, a sede da ferrovia ficou na cidade até 1920. Por esse motivo, alguns historiadores afirmam ser essa a primeira ferrovia do estado, já que as outras tinham as sedes na capital do império.
A sede da Efom tinha cerca de 35 mil m², e os objetivos dela eram audaciosos: estimular o surgimento de outras atividades, aumentar a mão de obra imigrante e, é claro, acelerar o escoamento das mercadorias. Com o tempo, o transporte de passageiros também ganhou destaque, unindo, inclusive, os povoados — que surgiram ao longo dos trilhos — às cidades.
O progresso avançava sobre rodas. Com a construção da ferrovia, São João del-Rei, atenta às ideias da era industrial, começa a fomentar empreendimentos, como a construção de estabelecimentos comerciais, teatros e hotéis — como o próprio Hotel da Efom, edifício destinado inicialmente aos passageiros. Por onde os trilhos passavam, mudavam-se paisagens, pessoas encontravam-se e despediam-se, e riquezas eram trocadas entre os trilhos. A arquitetura das cidades coloniais ilustrava bem o início das mudanças. A ferrovia em funcionamento modificou o uso do espaço urbano ao redor, e, com a possibilidade de importação de materiais, as construções passaram a utilizar o tijolo e o ferro como elementos estruturais e como formas decorativas.
Até se transformar numa locomotiva de uso apenas turístico, a maria-fumaça “Bitolinha” foi responsável por diminuir a distância entre aquela colônia imperial voltada para o oceano e o interior, que, com as riquezas que possuía, expandia as possibilidades de crescimento do que futuramente chamaríamos de Brasil.
Um passeio repleto de encantos
Crianças gritam entusiasmadas: “Olha, pai, o trem está andando!”; adultos e jovens com os celulares a postos para registrar o que é um registro da história; e quem consegue o assento na janela alterna a vista entre a paisagem e as grandes rodas da locomotiva.
O percurso turístico entre São João del-Rei e Tiradentes leva cerca de 50 minutos e garante a emoção, não apenas pela aventura — já que velocidade não é o forte do trem —, mas também pela possibilidade de viajar num meio de transporte que, um dia, foi fator primordial do desenvolvimento do estado e do país. A história está no imaginário, mas os cenários persistem. No trajeto, a locomotiva se cruza com fazendas centenárias, rios, montanhas e estações que preservam a arquitetura do século XIX. É fácil se encantar com os mares de morros, as casas na beira do trilho e a vida que segue já habituada ao barulho da “Bitolinha”, que apita ao se aproximar de cidades ou encruzilhadas. No trajeto, é possível avistar o Rio das Mortes, palco da Guerra dos Emboabas (1707-1709), e a Serra de São José, rica área de preservação ambiental.
O passeio começa antes mesmo do embarque e não precisa terminar depois de se chegar ao destino final. O espetáculo à parte fica por conta da rotunda na estação de Tiradentes, o incrível giro que permite a distribuição das locomotivas para cada baia, ação feita por um girador. O turista pode, e deve, ver todo o processo, que é feito (com calma e sem pressa) pelos operadores do trem. Tudo é realizado de forma manual, preservando o costume da época de ouro da maria-fumaça. Os encostos dos bancos também se invertem de lado, para a viagem recomeçar com novos e curiosos turistas. São muitos. De acordo com a VLI Logística, empresa responsável pela operação das estações, mais de 135 mil pessoas visitaram a locomotiva no ano passado.
Antes e depois do embarque
Não só de maria-fumaça se faz a atração. O passeio pode se estender para todo o complexo ferroviário, que, no conjunto, foi inteiramente tombado em 1989, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em São João del-Rei, a visita abrange o prédio da estação, com estrutura em ferro; as antigas construções do almoxarifado e do armazém (transformados em Centro de Artes e auditórios); e as oficinas de manutenção, com máquinas centenárias, de fabricação inglesa, que, ainda hoje, dão assistência para a reparação das locomotivas e vagões.
Já o Museu Ferroviário, no prédio anexo à estação, foi inaugurado por ocasião do centenário da Efom, em 1981. Além de fotos, documentos e objetos do fim do século XIX, o museu expõe a primeira locomotiva da ferrovia — fabricada em 1880, nos Estados Unidos, e responsável por trazer dom Pedro II para a inauguração.
Para além da ferrovia, a experiência se estende, proporcionando ao visitante outros mergulhos na história do Brasil. Se o destino final é Tiradentes, seja para passar o dia seja para aproveitar a noite da cidade, prepare-se para embarcar num cartão-postal colonial. Próximo à estação, a feirinha espera, com o artesanato local, que está, também, por toda a cidade. No restaurante, as delícias mineiras estalam nos fogões à lenha e, na praça principal, as charretes estão a postos para quem quiser experimentar, ainda, outro tipo de passeio. Se é dia de evento, prepare-se para uma programação intensa em meio a um cenário estonteante. Caso não, o som da roda que embala a locomotiva e os apitos do trem darão lugar ao burburinho sossegado de uma cidade que há 300 anos vive desafiando o tempo.