Marcelo Maffra – guardiões do patrimônio cultural

Marcelo de Azevedo Maffra, coordenador da Defesa do
Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais. Foto Cezar Félix

O promotor de justiça Marcelo de Azevedo Maffra — que nesse ano de 2024 completará quatro anos à frente da Coordenadoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais — fala sobre os ótimos resultados alcançados pelo trabalho da CPPC, hoje uma referência nacional; explica o uso de tecnologias avançadas por meio do aplicativo Sondar e afirma que a responsabilidade de proteção do patrimônio cultural não é só do poder público, mas é também da sociedade. “A comunidade é a melhor guardiã do seu patrimônio”.  

 Por Cezar Félix

 — Como o senhor sintetiza hoje o trabalho realizado pela Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC)?

 — O nosso trabalho na defesa do patrimônio cultural, da forma como existe hoje, reunindo todas as promotorias, começou em agosto de 2003 com a criação de um grupo integrado de promotores das cidades históricas. Ali foi plantada uma semente que evoluiu até a estrutura que conhecemos atualmente. Em 2005, foi criada a Coordenadoria de Defesa do Patrimônio Cultural, que passou a atuar nos 853 municípios de Minas Gerais. A nossa demanda, portanto, é gigantesca: são 300 comarcas e 300 promotores que têm entre as suas atribuições a defesa do patrimônio cultural. Eu sou o único promotor de justiça que atua exclusivamente na defesa do patrimônio cultural, uma vez que todos os outros colegas abarcam outras atribuições. A minha principal função é atuar nos casos de maior relevância, de maior complexidade e com maior impacto social. Em 2005, o trabalho da Coordenadoria de Defesa do Patrimônio Cultural do MPMG começou diretamente relacionado aos constantes roubos e furtos que aconteciam nas igrejas barrocas e museus, que estavam perdendo seus acervos para quadrilhas especializadas que vinham principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro em busca dos tesouros de Minas Gerais. Essa onda crescente de subtrações foi o grande catalizador do início da integração da atuação de todos os promotores do estado. Depois disso, ampliamos o trabalho para todas as outras temáticas do patrimônio cultural, especialmente patrimônio edificado, arquitetônico, imaterial, arqueológico, espeleológico, paisagístico e tantas outras.

— Então o estado de Minas Gerais pode ser considerado como uma referência na defesa do patrimônio cultural?

— No século XVIII o ciclo do ouro e dos diamantes estimulou a intensa produção artística e fez com que Minas Gerais se tornasse uma grande referência do barroco brasileiro. Ao logo dos 300 anos da nossa história, recebemos influência dos povos originários, africanos e portugueses, além dos paulistas, cariocas e baianos, que contribuíram para a formação da nossa grande diversidade cultural. Somos o centro geográfico do país e diversos eventos históricos importantes aconteceram no nosso território, como a Inconfidência Mineira. Por tudo isso, Minas Gerais reúne mais da metade do patrimônio cultural do Brasil, o que é motivo de bastante orgulho, mas também nos traz uma grande responsabilidade. Nesse contexto, o Ministério Público do Estado de Minas Gerais se tornou uma referência nacional na defesa do patrimônio cultural brasileiro, especialmente após a criação da Coordenadoria de Patrimônio Cultural, quando assumimos a vanguarda nacional na temática. Temos compartilhado nossas experiências com outros Ministérios Públicos, mostrando para os colegas um pouco do nosso trabalho e replicando esse modelo exitoso. Temos investido em tecnologias de ponta para auxiliar no processo de vigilância dos bens culturais, de resgate dos patrimônios desaparecidos. Por meio da tecnologia, nós conseguimos receber uma denúncia em tempo real, iniciar uma investigação e, em tempo recorde, realizar uma autuação que visa viabilizar a proteção dos bens culturais em curtíssimo prazo e com grande efetividade nos resultados. Também temos apostado no trabalho integrado com as demais instituições e, principalmente, com a sociedade. A responsabilidade de proteção do patrimônio cultural não é só do poder público, mas é também da sociedade. É o que a gente chama de responsabilidade solidária. A comunidade é a melhor guardiã do seu patrimônio.

O Ministério Público do Estado de Minas Gerais se tornou uma referência nacional na defesa do patrimônio cultural brasileiro, especialmente após a criação da Coordenadoria do Patrimônio Cultural, quando assumimos a vanguarda nacional na temática.

— De que maneira a Coordenadoria utiliza essa tecnologia disponível?

 — Dentro da temática dos bens culturais móveis e desaparecidos nós criamos uma importante ferramenta que é o Sondar, um aplicativo que foi pensado para auxiliar na busca dos bens culturais desaparecidos. Nós juntamos as bases de dados do Ministério Público com as do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do IEPHA (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais) e do Arquivo Público Mineiro. Chegamos em 2.500 bens culturais cadastrados dentro da nossa plataforma. Essas informações são públicas e podem ser acessadas por qualquer pessoa com acesso à internet. Com isso, municiamos a sociedade com as informações necessárias para constituirmos uma rede integrada de vigilância. Os cidadãos se tornaram verdadeiros fiscais, que vigiam e informam rapidamente os órgãos competentes, que passaram a atuar de forma mais efetiva. O Sondar tem obtido resultados bastante significativos justamente porque trouxemos a sociedade para participar da vigilância permanente dos bens culturais.

— A Coordenadoria busca sempre manter contato com as comunidades?

— O diálogo com a comunidade é hoje o grande pilar de sustentação do nosso trabalho, que não existiria sem a efetiva participação social. São as pessoas que elegem os seus patrimônios, são as comunidades que dão significado aos objetos e é a sociedade que transmite seus principais valores para as futuras gerações. A palavra “patrimônio” vem de herança, justamente porque tem a função de transmitir valores de uma geração para a outra. Nesse processo, o poder público é um mero garantir, que atua para fazer valer a vontade da sociedade. Por isso, a participação social é uma palavra-chave para todos que trabalham na defesa do patrimônio cultural. Não basta fazer o tombamento de uma edificação, é importantíssimo que a comunidade identifique naquele prédio histórico algum valor significativo, uma referência essencial para a sua história, para sua identidade. A partir dessa relação de identificação, estabelece-se a noção de pertencimento, que traduz a sensação de que fazemos parte daquela comunidade.

São as pessoas que elegem os seus patrimônios. Não basta fazer o tombamento de uma edificação, é importantíssimo que a comunidade identifique naquele prédio histórico algum valor significativo, uma referência essencial para a sua história, para sua identidade. 

— Ou seja, o aspecto imaterial também é visto como uma prioridade?

— O patrimônio, além de ser uma testemunha da história, é um signo representativo da nossa identidade. Identidade é o que nos diferencia dos outros povos, das outras sociedades. Todo bem cultural tem corpo e alma; porém, a alma, esse aspecto imaterial, intangível, é o que há de mais significativo no patrimônio. Cada bem cultural possui seu especial atributo, que faz com que aquele bem seja único, infungível. O atributo pode ser estético, artístico, histórico ou religioso. Esse aspecto imaterial faz com que o objeto seja insubstituível, sendo necessária sua conservação e proteção de forma preventiva. É impossível reconstruir esses aspectos imateriais do bem cultural. Pode-se reconstruir o corpo físico, fazer uma réplica, mas a essência se perde para sempre. Por isso é tão importante a atuação preventiva, antes da ocorrência de danos.

— A Coordenadora de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico  consegue sensibilizar a sociedade sobre a importância do trabalho conduzido pelo Ministério Público?

Uma das maiores bandeiras que o Ministério Público levanta — além da integração de todos os órgãos e equipamentos públicos que trabalham com a temática — é o envolvimento da sociedade na defesa do patrimônio cultural. Porém, isso só acontece a partir da educação patrimonial. As pessoas formam as suas opiniões e se interessam pelo patrimônio cultural a partir das informações qualificadas produzidas e divulgadas por veículos importantes das mídias como a Revista Sagarana. A nossa Constituição Federal não impõe apenas o dever de proteger e conservar o nosso patrimônio, ela impõe a obrigação de promover e de difundir as manifestações culturais. Essa difusão é que cria o sentimento de pertencimento na comunidade tão importante para esse trabalho de educação patrimonial.

— Quais são trabalhos da CPPC que o senhor considera que alcançaram êxito e reconhecimento por parte da sociedade?

— Temos diversas linhas de atuação que considero muito exitosas. O trabalho de resgate de bens culturais desaparecidos se tornou uma referência a partir do lançamento do Sondar. Não só em termos quantitativos, mas pela elevada significância social dos bens recuperados. São objetos que estavam sendo procurados há muito tempo e que agora estão retornando para os locais de onde nunca deveriam ter saído. Além disso, por meio de um trabalho integrado e multidisciplinar, instituímos o Programa Minas para Sempre, que já conseguiu destinar mais de R$ 40 milões para 27 projetos de restauração de imóveis históricos de Minas Gerais. É um programa que contemplou a restauração do Palácio da Liberdade e de diversos outros bens culturais que representam a diversidade do nosso povo. Hoje, por meio da plataforma Semente, conseguimos fazer uma distribuição equânime dos recursos financeiros e trazer resultados significativos para a sociedade.

O trabalho de resgate de bens culturais desaparecidos se tornou uma referência a partir do lançamento do aplicativo Sondar. Não só em termos quantitativos, mas pela elevada significância social dos bens recuperados.

— São muitos os desafios ainda a enfrentar na condução da Coordenadoria?

— A Coordenadoria procura cada vez mais ampliar o alcance das suas ações incluindo temáticas que até então eram poucos exploradas pelos órgãos de proteção. Tratar do patrimônio imaterial, trabalhar com o abstrato, é sempre um grande desafio para o Direito. Nós temos que atuar para que as práticas das comunidades tradicionais se perpetuem, para que os conhecimentos, modos de fazer e viver sejam transmitidos para as presentes e futuras gerações. A pauta do poder público e da sociedade é a mesma: trabalhar para que as futuras gerações possam usufruir e compartilhar desse rico patrimônio que nós temos em Minas Gerais.

 — Em um estado que viveu as tragédias de Mariana e de Brumadinho, como é a relação da Coordenadoria sobretudo com as grandes companhias mineradoras?

— A nossa base de trabalho é a sustentabilidade cultural. A sustentabilidade pensada para o ambiente natural é mais conhecida, mas ela também existe na temática do patrimônio. É possível um desenvolvimento sustentável em todos os aspectos, inclusive naquele que implique na preservação desses signos identitários do povo de Minas Gerais. Quando se pensa em mineração, não podemos esquecer que são atividades consideradas de indiscutível relevância social, já que, enquanto sociedade predominantemente urbana, dependemos dos minerais. Mas a extração mineral tem que ser desenvolvida da forma menos impactante possível, com a utilização das melhores tecnologias e com todo o cuidado que o meio ambiente cultural merece. Justamente por fazer parte da história do nosso estado, existem muitos vestígios arqueológicos dentro da área de influência de empreendimentos minerários. É importante conhecer, estudar, pesquisar, delimitar e conservar os sítios arqueológicos para que não sofram impactos irreversíveis. O mesmo se diga em relação ao patrimônio espeleológico e paleontológico. A atividade minerária, por envolver muitas vibrações e detonações, é potencialmente lesiva a esses ambientes sensíveis. É claro que, de uma forma geral, as empresas estão cada vez mais preparadas para lidar com a proteção do patrimônio cultural, inclusive para atender as exigências internacionais de certificação. Em relação às barragens, foi feito um grande trabalho do MPMG para cobrar a descaracterização das estruturas com risco emergencial. Além de defender a vida das pessoas, aquele trabalho também foi fundamental para tutelar o patrimônio cultural ameaçado por eventuais rupturas.

A nossa base de trabalho é a sustentabilidade cultural. É possível um desenvolvimento sustentável em todos os aspectos, inclusive naquele que implique na preservação desses signos identitários do povo de Minas Gerais.

— Como o senhor avalia a potencialidade turística de Minas Gerais?

— O turismo em Minas Gerais é muito movimentado também por nossa riqueza cultural. As cidades históricas mineiras atraem turistas de todo o Brasil e de vários países do mundo, pois elas são verdadeiros museus a céu aberto. São locais onde a população vive e respira a atmosfera da história, e as pessoas que vem de fora se deslumbram com o nível de conservação e preservação que nós conseguimos aqui em Minas Gerais. Nós temos quatro patrimônios da humanidade; o núcleo histórico de Ouro Preto recebe visitantes interessados não apenas em sua arquitetura colonial, mas também na diversidade cultural, inclusive rodeada por paisagens naturais maravilhosas. Da mesma forma Diamantina, Congonhas e o conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Do colonial ao modernista, do português ao africano, nossa cultura é riquíssima. O patrimônio tem que ser útil para a sociedade, não pode ser engessado ou separado do seu contexto original. O patrimônio é vivo e dinâmico. É importante que o turismo seja utilizado para movimentar recursos financeiros, que traga benefícios para o patrimônio e que seja feito de uma forma sustentável porque o turismo precisa observar regras nas quais o patrimônio não pode ter superado o seu limite de visitação.

—  Qual foi a jornada do senhor na carreira como promotor público até chegar na Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais?

— Eu entrei no Ministério Público em 2005 e a primeira comarca foi Grão Mogol, uma verdadeira joia, rodeada pela Serra do Espinhaço e dona de um núcleo histórico tombado, extremamente bem preservado e com uma das igrejas mais bonitas do Brasil, a Matriz de Santo Antônio.  Eu sempre fui um estudioso do direito ambiental e Grão Mogol me despertou esse olhar multidisciplinar do direito, para melhor entender a história e a identidade cultural. O trabalho do promotor de justiça hoje revela mais um desafio para o profissional: ele precisa ter conhecimentos muito além do direito. Tive a oportunidade de ser coordenador regional do meio ambiente no Alto Paranaíba durante seis anos e, antes de chegar a BH, a minha última comarca no interior foi Pitangui, a sétima vila do ouro. Eu já cheguei em BH com uma grande saudade de tudo que eu havia vivido nos 15 anos morando no interior. No final de 2024, vou completar quatro anos à frente da Coordenadoria de Patrimônio Cultural. É uma experiência muito gratificante ver nossos tesouros serem devolvidos e festejados pelas comunidades. Hoje eu faço parte do Instituto Geográfico de Minas Gerais e o meu doutorado é em história. Essas atividades me despertam outros interesses. Na nossa equipe temos arquiteta, historiadora, arqueóloga e especialista em conservação e restauração de artes sacras. É uma área extremamente multidisciplinar, complexa, mas que traz grandes benefícios para a sociedade.

O patrimônio tem que ser útil para a sociedade, não pode ser engessado ou separado do seu contexto original. O patrimônio é vivo e dinâmico.

O promotor de justiça Marcelo Maffra. Foto Cezar Félix

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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