A cidade visitada pela arte
Euclides Guimarães
O que faz uma cidade pulsar é a intensidade das trocas que nela acontecem. Desde suas remotas origens, há mais de 6000 anos, as cidades são o ponto de encontro da diversidade humana. Ali se encontram e se conectam os que vêm de muitos lugares, com as mais diversas habilidades, compleições físicas, vestimentas, atitudes. Artefatos, edificações e fragmentos da natureza, desde que convertidos em detalhes da paisagem em caminho, completam a composição cenográfica das tramas que fazem a cidade pulsar. A cultura é — em seu sentido material — natureza modificada pela ação humana, por isso toda cidade é um antro cultural.
Elementos estáticos na paisagem urbana, como os fragmentos de natureza e as edificações, ganham a forma de cenários, ou seja, ambientes que resultam das demandas criadas pela natureza das tramas humanas, para que neles elas possam se realizar. Arquitetos, designers, urbanistas ou qualquer um que historicamente tenha ocupado esse tipo de função, atuam como cenógrafos de um grande teatro que os atores sociais encenam constantemente: o teatro da vida.
Acontece que o cenário não é apenas um elemento passivo que dá fundo ao pulsar da cidade, de alguma forma ele também influencia a trama que o demandou. Ao criar a metrópole moderna, criava-se um cenário capaz de suportar as tantas pessoas que se aglutinavam na teia urbana industrial e, ao mesmo tempo, passava-se a cobrar do urbanoide formas de conduta cabíveis à retidão racionalista desses cenários. O urbanoide faz a cidade e a cidade faz o urbanoide, assim como no quadrado perfeito de Pompéia: “o semeador mantém a obra e a obra mantém o semeador”. As roupas estendidas nos varais mal esticados entre janelas de um lado a outro dos becos de Napoli parecem imprescindíveis para compor a incrível pulsação daquela cidade, assim como velhos carros de boi destituídos de suas juntas propulsoras caem tão bem no entorno do mercado velho de Diamantina. A pulsação é a forma como isso tudo se combina, conferindo a cada cidade uma forma de existência que lhe é peculiar.
Contudo, o pulsar da cidade não é a presença de tanta gente e tanta coisa, é a fluência com que elas se combinam quando o cotidiano as incita a se relacionarem, ondas que ondulam num movimento difícil de explicar e ao mesmo tempo quase impossível de não se sentir. A mesma química que compõe o lado inenarrável do amor e da amizade, feita de extratos buscados nas profundezas da alma humana, estabelece a topofilia que nos liga a cidades. É algo que se pode observar facilmente nos pareceres dos visitantes, que mal experimentam uns fragmentos de tempo e espaço na cidade visitada e respondem doutamente: “gostei” ou “não gostei”. Isso não chega a ser de todo um certificado de ignorância ou arrogância, é antes a sensação de maior ou menor sintonia com a pulsação da cidade. Nesse sentido, a pulsação é para ser sentida, mais do que descrita ou explicada, uma vez que não é corpo nem alma, é algo que brota da tênue linha imaginária que (não) separa estas duas coisas.
Os habitantes de uma cidade são obviamente os maiores responsáveis por seu pulsar, mas também são aqueles a quem esse pulsar costuma passar despercebido. Outros olhares como o do estrangeiro, do visitante, ou o do artista deslocam a experiência do estar ali para a de quem observa essa condição. O olhar do observador, do ‘flâneur’ de Baudelaire, Benjamin e João do Rio, propõe-se estranhar o que é familiar, mirando o cotidiano da cidade por um exercício mental de deslocamento, enfoque, realocação. Por consequência se faz possível ver a pulsação da cidade que assim se afigura como a aura que dela flui, sua alma, sua nudez espiritual.
A intuição aguçada do artista que intervém na cidade associa-se necessariamente à percepção e leitura de sua pulsação. A arte que brota nas ruas funciona como uma cenografia paralela a intervir em seu pulsar. Quando o suporte é público e proibido costuma ser a voz daqueles a quem a voz não é dada — gritos de liberdade que escapam pelas frestas da oficialidade, visto que esta raramente sintoniza-se com a espontaneidade intrínseca dos gestos que compõem o seu pulsar.
Some-se o lugar ‘underground’ de quem faz de tela o que não foi feito para isso, o olhar que lê a cidade para cenografá-la em paralelo às cenografias oficiais, a natureza negativa da arte como linguagem do que a realidade não dá e que, como obra, pode vir à tona. Resultado: aquela que pode ser a mais vigorosa forma de manifestação artística da contemporaneidade, a arte que se faz e se consome na rua, por artistas que podem ser ao mesmo tempo tão famosos e tão anônimos como o grafiteiro britânico Banksy e que encenam a cidade ao mesmo tempo em que interferem agudamente no seu cenário.
A cultura é — em seu sentido material — natureza modificada pela ação humana, por isso toda cidade é um antro cultural.