Artigo
Arte de rua e a visibilidade na cidade
Euclides Guimarães
Com o advento dos estilos de vida próprios da metrópole moderna, muita coisa mudou no modo como as pessoas se tornam visíveis umas às outras. Antes, e por milênios, a ostentação através da imagem era uma espécie de ferramenta do poder, usada, pelos sacerdotes e pelos templos, como reforço da fé e, pela aristocracia, como evidência de ascendência social. Em ambas as situações, com o efeito de impressionar para legitimar o poder por via da intensidade da experiência estética. Fora isso, estar visível significava estar sob vigilância. Nesse caso, o recado é claro: cuidado para não sair da linha, algo do nível da usual inscrição “sorria, você está sendo filmado”.
Na metrópole moderna, sem que os sentidos tradicionais dela desaparecessem, e podemos dizer que eles até se sofisticaram, a visibilidade ganhou novos significados sociais. Não sendo mais apenas a nobreza capacitada a ostentar, o vestuário, a decoração e a arte passaram a comunicar estilos de vida, simbolizar posicionamentos éticos e políticos, representar categorias profissionais ou mesmo destacar indivíduos pelas orientações e escolhas pessoais.
Com o advento das mídias que se espalharam pelas cidades entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, a exemplo do cinema, da fotografia, da vitrine e do out door, uma grande complexidade passa a abarcar os sentidos da visibilidade. Por um lado, surge a figura emblemática da celebridade, como alguém altamente visível, admirável, capaz de instigar ideais de ego e angariar legiões de seguidores, por outro, marcas e produtos despertam desejos pelos mesmos canais, consolidando a cultura do consumo. Aos poucos, todos começam a ter uma imagem para defender, tornando a visibilidade do indivíduo um sinal de prestígio. A internet e as mais novas mídias potencializaram esse novo regime de visibilidade ao democratizarem os lugares de quem fala e quem ouve, incluindo o requinte, por vezes cruel, de apresentar a cada instante o número de interlocutores/seguidores de cada falante. Qualquer um passa a poder ter o próprio blog, o próprio site, o próprio endereço no “Face”, construindo, mantendo ou modificando uma espécie de “eu midiático”. A ostentação, a manifestação, a vigilância, o bullying, a vergonha, a culpa, o escárnio, o talento, os preconceitos, as taras, a solidariedade, as tolices, as ingenuidades, tudo isso e outras coisas mais passaram a cintilar como arranjos estéticos e fagulhas éticas do mundo das telas.
Em meio a tamanha diversidade, além do que circula pelo ciberespaço, que cada vez mais se caracteriza como uma “cibercidade” planetária, permanece a condição complexa dos conglomerados urbanos onde, além das imagens, do simbólico e do imaginário, também os corpos circulam com toda a concretude do cimento, do asfalto, da madeira, da tinta, do metal e da carne.
Nada do que compõe a cidade pode significar plenamente se retirado do contexto múltiplo do endereço em que se encontra. Se um objeto é afixado em algum ponto da cidade, de pronto, ele começa a dialogar com os demais, inclusive com tudo o que passa, ganhando, assim, o caráter de meio de comunicação. Por vezes, fica irresistível potencializar a comunicabilidade do objeto, e a melhor maneira de assim proceder é convertendo-o em tela. Qualquer coisa ali pode virar tela, até as pessoas, que também se grafitam no modo de vestir, tatuar ou adornar os corpos. Nesse sentido, muros e paredes são como a pele, mudos tentando falar.
A arte de rua, em especial aquela que se estampa nos muros no formato de grafite, costuma ordenar esteticamente parte substancial do agito que caracteriza a combinação de matéria, imagem, sons e cheiros que constitui o pulsar da cidade.
Como a cidade, a arte que espontaneamente por ela brota é profusa; como a cidade, ela é imprevisível; como a cidade, ela se organiza no espaço, se distribui por um grid, sendo ordem, mas ordem que evoca o caos. Sendo assim, nada parece mais condizente com o cenário onde intervém que a arte do grafiteiro. A cidade é um lugar de contrastes, é onde se encontram o que fica e o que passa, o que nasce e o que morre, o que inova e o que envelhece, o que sobe e o que desce, o que permanece e o que desaparece… E a arte de rua que dela brota e dela fala também é assim. Atrevida e delicada, tem natureza efêmera, que contrasta com o caráter de registro estável: nada mais perene que uma pintura mural, nada mais perecível que uma pichação num muro. E o que é o grafite? Uma pintura mural pichada num muro, que brota como os anônimos que diante dela se surpreendem ao seguirem caminhos cotidianos.
Sujeito às regras da dinâmica do cenário urbano e às contrarregras da ausência de oficialidade, da desautorização, das “boas maneiras”, o que o grafite faz é dar forma a essas fronteiras sempre tênues que marcam a espacialidade e a temporalidade da vida e da imaginação que dela deriva. Forçando os limites dos regimes de visibilidade, também estes permeados por contradições, o grafite expressa aquela que pode ser a mais vigorosa força mental de nosso tempo: uma estranha propriedade dos sistemas complexos, a conversão de forças naturalmente contraditórias em harmônica complementaridade.
Se um objeto é afixado em algum ponto da cidade, de pronto, ele começa a dialogar com os demais, inclusive com tudo o que passa, ganhando, assim, o caráter de meio de comunicação.
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