Artesanato e arte popular — mãos que constroem histórias

Artesanato e arte popular: os termos se confundem em diferentes interpretações. Porém, existem significativas diferenças entre as criações dos dois afazeres. A produção artesanal resulta do próprio trabalho manual do artesão. Já a arte popular é fruto da criação do artista e reflete com mais expressividade as crenças e tradições de um povo.

Ensaio fotográfico por Eduardo Gontijo

Da abundância de folhas, palhas, cipós e fibras, nasceram peneiras, cestos, esteiras e redes. Da madeira, fez-se canoas, ocas, arcos e flechas. Penas e peles de animais foram convertidas em roupas e enfeites para cerimônias religiosas. E, das mãos que agilmente transformaram tudo isso, nasceu a cultura indígena brasileira e os primeiros traços do artesanato do país.
Como bem pontuou o escritor mexicano Octavio Paz, Prêmio Nobel de Literatura em 1990, falar de artesanato é falar mais de pessoas que de objetos, pois o fruto resultante do trabalho artesanal é um produto “com alma”, no qual estão presentes o saber, a arte, a criatividade e a habilidade de um povo.

 

 

O artesanato é parte da contemporaneidade.

Assim, se hoje conhecemos um pouco da cultura dos índios brasileiros ou até dos povos primitivos ao redor do mundo, anteriores à invenção da escrita, é porque antropólogos e historiadores reconstruíram parte dessa história a partir de artefatos encontrados em variadas partes do mundo. Nesses objetos, os estudiosos encontraram os elementos do meio natural do período, a expressão dos sentimentos do homem, as formas de interação dos grupos. Não há dúvidas de que o artesanato é um dos elementos de construção da identidade de um povo.

 

O saber, a arte, a criatividade e a habilidade.

Foi assim também que se conheceu parte da história cultural brasileira antes da chegada das 13 caravelas de Cabral. Considerando-se a riqueza do que era produzido pelos índios locais, não há dúvidas de que se tratava de uma cultura abundante em simbologias, rituais e crenças. Um bom exemplo são os povos marajoara, habitantes da Ilha de Marajó por volta do ano 400 da nossa era, autores de belas peças de cerâmica, com modelagem tipicamente antropomorfa.

 

O barro é a matéria-prima.

Mas foi a cultura de Santarém, também na região amazônica, que revelou uma das mais antigas e expressivas amostras artesanais indígenas. A produção mais característica desses povos foi a cerâmica, cuja decoração, bastante complexa, apresentava, além da pintura e do desenho, ornamentos em relevo, com figuras de seres humanos (cariátides) ou animais. Se tudo isso mostra parte da estrutura vivida por esses povos, o desaparecimento desses objetos artesanais durante séculos conta parte da história do Brasil.

 

A arte popular tem um vigor heróico.

Caldeirão de índios, negros e portugueses

A chegada dos portugueses e a posterior migração forçada de africanos, trazidos como escravos, apagaram parte dos traços culturais indígenas, com o início da importação dos produtos de primeira necessidade. Nos três séculos de colonização vividos pelo Brasil, a vida cultural esteve intimamente ligada à Coroa Portuguesa e aos padrões europeus. Em Minas Gerais, características especiais da sociedade estruturada em função da busca de metais preciosos fizeram o europeu, o indígena e o africano se unirem para criações artesanais únicas.

A noiva, mais uma peça clássica.

No século XVII, os paulistas organizaram suas famosas bandeiras e desbravaram as terras do interior do país em busca de ouro. Durante suas cruzadas, fundaram os primeiros arraiais de Minas Gerais. Logo, nasceu Vila Rica (atual Ouro Preto), que acabou por se tornar a capital da província e, posteriormente, do estado, e os antigos arraiais viram surgir uma intensa vida urbana. Nasceu, assim, a necessidade de uma produção que atendesse às necessidades mais imediatas da população, e uma produção artesanal destinada, primeiramente, a suprir a demanda desses povos recém-migrados floresceu.

 


A sempre-viva dos campos rupestres.

Muitos dos recém-chegados também trouxeram seus saberes, suas experiências e habilidades. Bons exemplos são os artesãos portugueses que trabalhavam nas igrejas, esculpindo as volutas dos altares, os santos e os elementos decorativos que confeririam, mais tarde, toda a singularidade típica ao Barroco mineiro. Não só produziam, como também dividiam seus conhecimentos com os nativos em busca de ajudantes, que posteriormente acabaram também virando mestres. Cada um deles imprimiu peculiaridades da sua vivência na arte originalmente portuguesa, e os produtos importados foram sendo substituídos pelos locais. Assim nasceu o Barroco mineiro.

 


Peças artesanais em estanho.

Máquinas que substituem homens

A partir desse momento, percebendo que a produção artesanal mineira estaria retirando de Portugal um grande volume de vendas, D. Maria I proibiu a fabricação de panos, objetos decorativos, ferramentas de trabalho, armas, entre outros produtos. Até o século XIX, o artesanato brasileiro ficaria restrito a esse decreto e a produção dele, voltada apenas ao culto nas igrejas. Só com a chegada, em 1808, de D. João VI e sua comitiva de mais de 15 mil pessoas, é que o país começou a passar por uma série de reformas que trouxe um pouco mais de liberdade política para a produção brasileira, mas o artesanato acabou engolido pela manufatura, que logo seria substituída por uma estrutura industrial.

 

O clássico da arte popular.

No lugar de oficinas e artesãos, surgiram fábricas e pesadas maquinarias. As mãos laboriosas, que antes transformavam a matéria bruta em objetos carregados de singularidade e criatividade, agora se esforçavam para acompanhar a velocidade das esteiras e a produção em série. Inúmeras cópias baratas substituíam pretensiosamente objetos que outrora eram impregnados de significado e nobreza próprios. Mas quem pensou que se tratava do ocaso definitivo do artesanato brasileiro se enganou.

 

Procura pelo que é original, autêntico e socialmente responsável.

O final do século XX inaugurou mudanças significativas na sociedade de consumo. Pela primeira vez, essa economia parecia estar em crise. A filosofia da abundância, a busca do lucro pelo volume e pela prática dos preços baixos já não mobilizava os consumidores como antes. De uma produção em massa, baseada na oferta de produtos padronizados, o século XXI deu início à segmentação de mercado, com a crescente demanda pelo que era original, autêntico e socialmente responsável. A atividade artesanal ressurge, assim, na contemporaneidade como um ato de resistência cultural.

Artesanato e arte popular

Se há certa resistência cultural na produção artesanal, a arte popular tem um vigor quase heroico. Apesar de os termos se confundirem em alguns contextos, existem diferenças significativas entre a produção de um e de outro. Enquanto a produção artesanal atualmente é fruto da necessidade e se volta frequentemente a uma lógica de mercado, a arte popular é fruto da criação individual e reflete com mais força as crenças e tradições de um povo.

 

A arte popular reflete as crenças e tradições de um povo.

Essa pequena diferença se reflete nas produções de cada um. Objetos artesanais são, por definição, únicos, uma vez que talhados sem a precisão mecânica das máquinas. Na maioria das vezes, porém, fazem parte de uma pequena série de objetos similares que não deixam de representar uma visão que o autor deles tem do mundo, mas que são feitos para serem expostos no mercado. A arte popular, por sua vez, é feita de peças únicas, feitas com o objetivo de despertar sentimentos e consolidar valores. Assim, artesanato é o próprio trabalho manual do artesão, enquanto arte popular se configura como obras únicas, de reconhecido valor estético e artístico. Cada um com seu valor e sua beleza inegáveis.

 

 

Cerâmica do Vale do Jequitinhonha.

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