Por Walter Navarro
Fotos Jean Yves Donnard
Esta é uma velha canção nos ouvidos de quem me conhece: sou um mineiro fajuto, não de ferro, mas de plástico, talvez reciclável.
Nasci em Barbacena, mas não exerço. Amar Minas Gerais é uma tarefa, uma meta diária que vou bebendo como Coca-Cola ou uma cachaça. Já misturei as duas.
O que vocês acham de um mineiro que não gosta de pão de queijo? Já comi claro, já provei, mas nunca entrei numa lanchonete e pedi um pão de queijo, nem meio. É trauma de infância. Lembro-me que, ainda criança, via meu pai, este sim, um mineiro convicto e orgulhoso, até bairrista; chegando em casa com estranhos embrulhos, como gordura de porco, toicinho (?) pra minha mãe derreter. Ele dizia que esta gordura era mais saudável que os óleos em lata. Acabou morrendo de um AVC…
Com a gordura que, quando derretida no fogão, empesteava meu lar doce lar, com inolvidável e, repito, traumatizante fedentina; meu pai sempre trazia um negócio chamado polvilho, para a feitura do pão de queijo. Ou seria do biscoito de polvilho? Sei lá! Só sei que o cheiro era também insuportavelmente azedo. Por isso, ainda hoje associo o polvilho com aquele polvilho Granado, pra chulé. Pão de queijo pra mim tem cheiro de chulé, mil perdões. Avisei que era um mineiro fajuto, um aprendiz da mineiridade, palavra também antipática, pra mim; meio paulista que sou.
Por falar nisso, uma outra heresia por favor! Sabiam que a comida mineira é paulista? Li na revista da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Bem que o autor avisou que os mineiros não iam gostar da novidade. Mas faz sentido e adoro coisas que fazem sentido. Escreveu ele que, todo mineiro é paulista, já que fomos descobertos, criados e c
olonizados pelos bandeirantes paulistas, que aqui invadiram, desbravaram, à procura de ouro e pedras preciosas. Para as entradas e bandeiras era preciso comida, muita comida. Daí os bandeirantes, pioneiros como os do Velho Oeste Norte-Americano, vindo para Minas, batizando Minas como Gerais; eram obrigados a trazer comida em lombo de burros. E que comida era essa? Coisas defumadas e salgadas que resistissem ao calor … Qualquer semelhança com nosso tropeiro e derivados não tem nenhuma coincidência. A comida mineira/paulista só parou de ser consumida em São Paulo, capital e outras grandes cidades, quando o rico estado importou hábitos europeus e classificou a comida paulista/mineira como baixa gastronomia. Mas, o interior paulista, até hoje a adota, mesmo que com outros nomes.
Há muito anos, em 1997, um dia antes de viajar para Paris, entrevistei os super paulistanos Rita Lee e Roberto Carvalho, no Hotel Ouro Minas. Eles estavam em turnê de lançamento do CD Santa Rita de Sampa. Durante a entrevista, contei que o chato Gerald Thomas odiava comida mineira porque era muito pesada. Ele reclamou, como sempre faz de tudo, que as pessoas aqui comiam torresmo o tempo todo. Rita nem acreditou e os dois confessaram adorar comida mineira. E Rita ainda declarou outra paixão em Minas: as pedras. “Adoro as pedras de Minas, em São Paulo não temos pedras. E estranho, vocês não falam das pedras. Vocês não gostam?”. Sim, Rita. Adoramos, apenas não gostamos de sair por aí alardeando nosso amor por pedras. As pessoas podem pensar que as usamos para atacar aviões e discos voadores que cruzarem Varginha…
Eu avisei que era fajuto porque, além de tudo, saí de Barbacena, aos cinco anos de idade e nunca mais voltei. Cresci em Campinas, São Paulo — meu pai, aquele da gordura e do polvilho — era advogado da Petrobrás e, como sabem, Minas pode ter minérios gerais; até refina, mas não tem petróleo.
Àquela época, anos 70 do século passado, Barbacena para mim, era como Itabira para Drummond, apenas um dolorido e distante retrato na parede. Cansada de guerra, destruída por seus filhos, renegada por seus netos, como eu. Mãe ingrata, ainda que seduzida e abandonada pelo marido.
Mas Minas é como o samba, agoniza e não morre. Balança e não cai.
Em Campinas, eu era um exilado sem saber, peixe fora d`água. Lá eu era mineiro por causa do sotaque e hábitos; aqui, nas férias, era paulista por causa dos hábitos e sotaque. Duro não é, meu? Agora entendendo a Identidade Bourne!
Finda a sessão psicanálise, quero contar como descobri e me orgulhei de Minas pela primeira vez. Mais, como descobri Minas e sua riqueza, sua originalidade e fortaleza. Foi pela música.
Nas férias de 1976, dezembro de um ano dourado, em Barbacena, meu primo Oyama — minha tia Lenira casou-se com o nissei Mário Mayumi — me aplicou o disco (vinil) “Meus Caros Amigos de Chico Buarque”. Nele, além do dono da voz e do disco, Chico Buarque; descobri Milton Nascimento que dividia com o anfitrião a bela e libertária cançã
Pulemos cinco anos porque vou fazer 50 em outubro e não tenho espaço para meio século de memórias póstumas de Brás Cubas.o, “O que será?”. Pronto, a porteira de Morro Velho estava aberta e pela frente. Só que, antes de
mergulhar em Milton e no Clube da Esquina, encontrei anteriormente a outra turma do carioca Chico Buarque: Vinicius, Tom Jobim, Toquinho e a Bossa Nova, claro.Fui me alfabetizando, na melhor música do mundo, a brasileira, aos poucos. Comecei a comprar discos de Milton, mas aquela voz, aquela música barroca batizada com Beatles, ainda era muito estranha. Faltavam as raízes perdidas, faltava a liga final.
Natal de 1981, dias antes de fazer minha primeira viagem à Europa, aos 19 anos. Amigo Invisível, que em Minas é Amigo Oculto, entre os colegas do Colégio (americano com nome francês) Notre Dame de Campinas, Congregação de Santa Cruz. A festa foi num sítio. Sabem o que ganhei de presente da amiga Alexandra? O disco novo de Beto Guedes, “Contos da Lua Vaga”, o quarto de sua linda carreira. Pronto! A Mágica estava feita, reforçada por uma dedicatória mais ou menos assim: “Para Walter, um pouco de sua Minas Gerais, a bela música de Beto Guedes e blá blá blá”.
Avisei que era um mineiro fajuto, um aprendiz da mineiridade, palavra também antipática, pra mim; meio paulista que sou (…) Eu avisei que era fajuto porque, além de tudo, saí de Barbacena, aos cinco anos de idade e nunca mais voltei. Cresci em Campinas, São Paulo.
Adorei, mas, para variar, não consegui captar a mensagem. Claro, eu não conhecia Belo Horizonte, mesmo assim, enchi-me de orgulho porque aquela turma, muito antenada, curtia e compartilhava a melhor música de Minas, muito antes do Facebook e sem ao menos, como eu, conhecer Minas.
Fui viajar e, em Paris, conheci um de meus melhores amigos, até hoje, Maurício de Oliveira Campos Jr. De onde ele era? Belo Horizonte! Qual minha primeira viagem de volta ao Brasil? Belo Horizonte. Tava ali a liga final.
Mas eu não sabia, ainda.
Não sabia que o Clube da Esquina, de Milton, Beto, Toninho Horta, os Borges, Brants e muitos outros, mais que de Minas, era a cara, a trilha sonora de Belo Horizonte.
Em 1984 meu pai aposentou-se. Como fiel e orgulhoso mineiro, quis voltar para Minas, mais exatamente para sua querida Barbacena, onde esperava viver de pescaria e jogos de buraco com seus amiguinhos de infância.
E eu? Eu que me virasse, “uai”! Me virei primeiro, trocando o curso de Economia, na Unicamp, pela Economia da UFMG. Em março de 1985, lá estava eu, sozinho, morando na rua Timbiras, 1942, apartamento 503, entre o centro e o bairro de Lourdes. Eu mal conseguia distinguir um do outro.
Não sabia que o Clube da Esquina, de Milton, Beto, Toninho Horta, os Borges, Brants e muitos outros, mais que de Minas, era a cara, a trilha sonora de Belo Horizonte.
Gostei de morar sozinho pela primeira vez. Tudo que fiz pela primeira vez em Campinas; repeti com muito prazer, em Belo Horizonte. Principalmente com as moças, até hoje, as mais lindas do Brasil.
E onde tem mulher e estudantes, tem bares, tem noite, tem Belo Horizonte, tem mundo, tem Minas Gerais. Caí de boca e desconfio não ter me levantado até hoje. Conheci Belo Horizonte na veia. Vieram-me as leituras dos mineiros; de Pedro Nava até Fernando Gabeira, passando pelos mineiros do Rio: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino; menos Guimarães Rosa que é para profissionais e não novatos de primeira viagem e fajutos como eu. Vamos com calma, porque o andor é de barro…
Foi nesta época, de 1985 a 1989 que me descobri, que me senti mineiro, ainda que tardio. Fiz jornalismo e publicidade na PUC Minas. Lá também fiz amigos eternos, mas o feroz carrossel da vida, mais uma vez, me mostrou que o mundo é vasto mundo e voltei para Paris, claro, atrás de uma mineira, de Barbacena…
Fiquei lá, trocando correspondência com Minas, durante ano e meio, até voltar a Belo Horizonte. Voltei e voltei trabalhando, como colunista social, na coluna do Paulo Navarro, que me aplicou outra turma de outros eternos amigos.
Barbacena, Campinas, Minas, Belo Horizonte, Paris. O feroz e doce carrossel, a mosquinha azul me picou de novo e, um ano depois, por causa da mesma mulher e da mesma cidade, lá estava eu, de volta a Paris, para mais quatro anos de um doutorado que nunca terminei, na Sorbonne I.
Acontece que aí eu já era mineiro. Podia pensar e agir como um paulista fajuto de Paris, mas Minas é para sempre.
Voltei em 1996, sem doutorado, sem namorada, sem emprego, mas com lenço, documentos e muita vontade de ficar, de tomar jeito, de fazer um “intensivão”, um PhD em Minas Gerais.
Acho que meio que consegui, sei não, mas acho que sei lá…
Depois de quatro anos, Barbacena, Minas profunda, mudaram nada. Mas Belo Horizonte já dava ares do que é hoje, uma mulher madura, interessante, ainda que tímida por baixo dos panos católicos.
Estou aqui desde então, claro que, com muitas viagens no lombo, Brasil adentro, mundo afora, sempre voltando a Minas e suas minas.
Dizem que a França tem todas as paisagens da Europa. Minas Gerais também tem quase todas as paisagens do Brasil, com exceção do litoral, por enquanto… Mar aqui, só o de montanhas que, para os franceses, são morros perto dos Alpes. Assim como nossas catedrais são “igrejinhas”, perto de uma Notre Dame entre outros templos milenares dos franceses.
Nosso barroco; se está aquém do italiano, é dos mais lindos e originais. Temos as Cidades Históricas —Tiradentes, Ouro Preto, Diamantina —que sobreviveram, bem ou mal à “força da grana que ergue e destrói coisas belas”.
Temos pitadas de Mata Atlântica, muito sertão e cerrado, e uma grande cidade, a capital Belo Horizonte que, apesar de tudo e de sua juventude transviada, está cada vez mais moderna, bonita e cosmopolita como todo bom mineiro, no fundo, é.
Os caminhos de Minas. Outrora Gerais, ainda guardam riquezas da natureza como as pedras, as rochas, as montanhas de ferro, cachoeiras, estradas de terra que “nos levam para frente, arrastando a tradição”.
A comida mineira, mesmo um pouco paulista, atingiu um grau jamais visto por outras cozinhas regionais. Tanto que Minas vai representar o Brasil no Madrid Fusion, principal congresso da gastronomia mundial, em janeiro de 2013, Espanha. O governo de Minas e iniciativa privada, querem o “Estado da Gastronomia”. Honra nascida no Festival de Gastronomia de Tiradentes, que recebeu, encantou e cativou o crítico do jornal “El Pais” e presidente do Madri Fusion, José Carlos Capel.
E nosso maior tesouro culinário, pelo menos em minha humilde opinião, o Sr. Queijo, está prestes a ser descoberto pelo país dos queijos, a mesma e já tão citada, França que, não à toa, comemora a Queda da Bastilha, com sua contemporânea, nossa Inconfidência Mineira, daí talvez esta vocação, esta marca registrada, esta estranha mania de França e Minas cultuarem a tal da Liberdade/Liberté.
O maître fromagier Gerard Poulard recentemente visitou Belo Horizonte. Poulard é conhecido como o Embaixador dos queijos franceses e viaja pelo mundo divulgando suas nobres iguarias. É um dos três chefs do mundo especializados em queijos. É também o único selecionado pelo Guia Michelin. E se ele nos apresentou mais de 80 queijos, num país que fabrica mais de 400 tipos — Charles De Gaulle dizia ser muito difícil governar um país com tantos queijos — claro que provou do queijo Minas.
E um queijo, puxa uma cachaça, um torresmo, uma linguiça… Assim caminha nossa humanidade e nosso “mineiro uai of life”. Imaginem que sucesso fariam, uma portinha em Paris, vendendo pão de queijo e coxinha de catupiry… Será que é assim que é vencer, um dia, mesmo sendo jornalista?
Os estrangeiros se apaixonam pela caipirinha, no Rio de Janeiro e no Nordeste. Imaginem quando descobrem nossas mais de 400 cachaças. Deve ser por isso que é difícil governar Minas. Conter Minas dentro de suas montanhas.
Mas Minas é Gerais, muitas e múltiplas em todas as áreas.
Nossa arte vai do artesanato mais popular à grande e bela arte de um Amílcar de Castro, sem esquecer, Mestre Ataíde, Aleijadinho, Guignard, “seus filhos e netos” que hoje praticam obras das mais cúmplices com o mundo, seja na pintura, escultura, instalações, vídeos, fotos. Só falta o cinema acordar…
Estão aí nossos museus que exibem Minas desde seu barroco, arte sacra, oratórios; até o que se faz de mais moderno e exuberante, como em Inhotim, um lugar sem par no Brasil e talvez no mundo, já que além de galpões, tem arte a céu aberto e um paisagismo que sozinho justifica a admiração de todos que o visitam.
Os caminhos de Minas. Outrora Gerais, ainda guardam riquezas da natureza como as pedras, as rochas, as montanhas de ferro, cachoeiras, estradas de terra que “nos levam para frente, arrastando a tradição”.
Minas que foi berço, laboratório e auge de Oscar Niemeyer na Pampulha, com JK e mais recentemente com a Cidade Administrativa; nossos cartões-postais de Belo Horizonte.
Belo Horizonte do Complexo da Praça da Liberdade, do Museu de Artes & Ofícios, da nova Savassi e do novo Mineirão.
Minas Gerais e seus bares, sua Comida di Buteco tipo exportação; da alta gastronomia em sua capital e do cafezinho com broa de milho e uma lasca de queijo em seu infinito interior.
Minas do Grupo Corpo, Galpão, do futebol, da música e da literatura.
Minas de Guimarães Rosa como a Bahia é de Jorge Amado.
Minas de Milton Nascimento e do Clube da Esquina.
Minas na vanguarda da moda e da tradição das mais antigas festas populares e religiosas.
As muitas Minas e a vastidão dos Gerais.
Os caminhos e mãos de Minas que saem do passado e nos apontam o presente cheio de futuro de modernidade e tecnologia.
Natureza e selvas de pedra tão próximas, convivendo quase em harmonia. Se agredindo e se completando, numa briga fraternal que não pode ter vencedores. É pau, é pedra, é um belo horizonte. Deserto glacial com paisagens de Marte e de Vênus.
Fauna e flora, concreto e asfalto selvagem. Montanhas e estradas de terra, de ferro; prédios de vidro e o trem de superfície que é quase um metrô. Água, sangue ao molho pardo e areia. A Festa do Divino, de Nossa Senhora Rosário, o congado e os festivais de cinema, teatro, vídeo, som e luz. A canequinha e o bule de café esmaltados e o design mais moderno. As bandas de praça e as bandas de rock. A pedra sabão e o plástico. A cachaça, o Mate Couro e a Coca-Cola. Os móveis antigos, as fazendas, o gado; o aço, o vidro e o cimento. As minas e as fábricas da FIEMG. A riqueza e a devastação. O carro de boi e a Fiat. O feijão tropeiro e o “petit gatêau”. Grutas, rios; pontes e arranha-céus.
Muito tempo se passou e fui forçado a descobrir que Minas não era apenas um disco de Beto Guedes na parede dolorida em São Paulo. Mas um amigo oculto que não para de me surpreender e preencher lacunas. Tudo aqui é geral e grande, recheado e esvaziado.
É a velha canção nos ouvidos de quem me conhece, mas hoje com novos acordes e arranjos: não sou mais um mineiro tão fajuto. Ganhei, recuperei o ferro fundido e perdido. Juntei tudo ao plástico e me reciclei. Voltei a nascer em Minas, aprendi a ser mineiro exatamente por ter morado tanto tempo fora.
É setembro, faz frio e calor. A chuva é pouca e o verão vem aí. Mais uma vez estou indo para Paris e Toscana, na Itália, de férias. Impossível não levar Minas, não encontrar um queijo Minas dentro de um “camembert”, um “brie” francês e uma igreja barroca de Ouro Preto ou Mariana, numa cidade medieval e pequena como Lucca, de onde vieram meus bisavós maternos, para… Minas.
Minas talvez também seja isso: uma cachaça francesa, um altar italiano
PS: Voilà! Quem busca, acha e perde nunca mais.