Sempre-vivas, flores da vida
A sempre-viva, símbolo de temperança e beleza dos povos tradicionais do Alto Jequitinhonha, tornou-se base para o desenvolvimento de um mercado lucrativo e sustentável, capaz de gerar novas perspectivas para famílias que vivem da coleta da planta há mais de um século.
Reportagem Carolina Pinheiro
Fotos André Dib
No centro/noroeste do sertão mineiro, o caminho das flores abriga as sementes deuma tradição centenária. Dezenas de comunidades extrativistas se espalham por pradarias repletas de sempre-vivas, espécie nativa da região. A planta, colhida o anotodo, é um marco da economia de subsistência do lugar. Do Serro a Diamantina, cerca de três mil famílias se ajustam a uma mesma cadeia produtiva.Pesquisas realizadas nas áreas de ocorrência da eriocaulaceae — a família da autêntica sempre-viva — apontam que 70% das espécies do mundo estão concentradas na cordilheira do Espinhaço — fator de grande apelo para a criação, em 2002, do Parque Nacional (Parna) das Sempre-Vivas. Oparque integra o Mosaico de Unidades de Conservação (UCs) do Espinhaço e divide os biomas Cerrado e Mata Atlântica.
De acordo com Renato Ramos, biólogo e coordenador de projetos na FundaçãoComunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi), pelo menos 20 municípios localizados entre as Serras Negra e do Cabral estão envolvidos direta ou indiretamente com a atividade. “O mercado de flores ornamentais gera renda para a população desde o início do século XX, tendo um pico de comercialização no período da Segunda Guerra Mundial, quando eram utilizadas para a fabricação de arranjos fúnebres”, diz.
Manejo controlado
O colapso não tardou. A coleta indiscriminada resultou, em 1997, na proibição do extrativismo, medida que gerou impacto imediato na rotina das comunidades tradicionais. Do entrave, brotou o ímpeto capaz de transformar a realidade social dos moradores. Há 12 anos, diversos projetos de manejo controlado da flora são desenvolvidos em vilas como a de Galheiros, na zona rural de Diamantina e de Andrequicé e Raiz, distritos de Presidente Kubitschek.
As novas perspectivas asseguram fonte de trabalho e renda para inúmeras pessoas. “Os principais objetivos são diversificar a produção e incrementar os serviços, estimulando a capacidade de autogestão dos participantes”, afirma Ramos. Entre as ações — que contam com o apoio do SEBRAE, UFVJM (Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri) e EMATER — destacam-se o cultivo de flores típicas em vasos para fins paisagísticos e a implantação de campos de flores experimentais para a confecção de artesanato. As práticas agregam valor aos produtos e garantem a oferta sustentável de matéria-prima, ampliando os potenciais docomércio local.
Capacitação e competitividade
Galheiros foi o povoado a dar os primeiros passos no desenvolvimento de estudossobre o manejo adequado das flores. Maria Araújo, a matriarca de 85 anos da família Borges, relata que a equipe chegou ao local com o objetivo de capacitar os moradores para a realização de um projeto viávelambientalmente. “Os especialistas foram acolhidos aqui. Marcaram reunião. Pediram pra gente fazer um levantamento das plantas. Qual que estava acabando? Qual que poderia ser colhida? Mostraram que a gente não estava deixando semente no campo, estava colhendo de qualquer jeito, queimando em época errada. Ficamos dois anos só de curso. Depois é que eles trouxeram um professor pra ensinar o artesanato”, diz.
Tânia Machado, presidente do Centro Cape(Instituto Centro Capacitação e Apoio ao Empreendedor), de Belo Horizonte, e uma das criadoras da Associação Brasileira de Exportação de Artesanato (ABEXA), afirma que o princípio do trabalho de fomento é gerar a reflexão nos produtores. “O nosso papel é dar as ferramentas, é facilitar, mas eles é quem devem pensar se querem mudar e como querem fazer isso. A comunidade é que decide sobre o caminho e o ritmo que seguirá para atingir as suas metas”, conta. Com o artesanato de sempre-vivas competitivo no mercado, em pouco tempo, Galheiros conquistou a sua independência financeira.
Referência internacional
Fundada em 2001, a Associação dos Artesãos de Sempre-Vivas, hoje com 29 associados, é um espaço de discussão e planejamento coletivo. O negócio, cada vez mais rentável, transformou a comunidade em referência internacional. Os artesãos expõem em feiras e lojas de
Diamantina, Ouro Preto, Tiradentes e Belo Horizonte; participam de eventos em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife; e em setembro de 2013, integraram a mostra Mulher Artesã Brasileira, realizada durantea Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque.
Tânia afirma que o Projeto Brazilian Crafts Women, promovido pelo Centro Cape em parceria com o Governo Federal, nasceu da intenção de desvendar a alma de mulheres que alcançaram, por meio da produção artesanal, uma forma de subsistência e motivação constante de transformação da sua realidade social. “São mulheres que se valem de toda a sua força psíquica e física no esforço de dominar o manuseio dos diversos materiais encontrados no meio ambiente, elevando-os ao status de obras de arte genuínas”, comenta.
Artesãos associados
Juracy Borges da Silva foi a escolhida para representar Galheiros na exposição que contou com a presença de 15 artesãs de 12 estados do país. “Foi uma grande alegria poder levar o nosso trabalho para o mundo, mostrar a simplicidade do nosso povo.” O grupo de associados, que possui, há seis anos, um contrato com a rede de lojas varejista Tok&Stok, cultiva as espécies ameaçadas de extinção pé de ouro e chuveirinho em um campo experimental de 300 metros quadrados. A colheita é realizada também em campos naturais, espalhados pela região, e em particulares, já que alguns moradores cultivam flores no quintal de suas casas. “Cada mês, colhe-se um tipo de flor e cada associado colhe de 20 a 30 quilos por espécie. Para nós é um privilégio servir de exemplo para as novas gerações, que terão condições de dar continuidade a essa história. Sou orgulhosa do meu trabalho”, diz a artesã.
Entre as peças produzidas estão abajures, guirlandas, árvores de natal, porta-guardanapos, arranjos de mesa e luminárias. Na hora de criar, Ivete Borges da Silva, uma das filhas de Maria, esclarece que escolhe as cores de acordo com o estado de espírito — “se a pessoa está alegre, oarranjo fica alegre” — e com o gosto do cliente — “depende sempre do pedido que chega pra gente.” O preço estipulado para cada uma é definido pelo grupo de artesãos. Para avaliar, são considerados itens como o trabalho que dá para fazer, a matéria-prima escolhida e o tamanho da peça. A produção é individual, mas a comercialização é coletiva. “Nosso plano é alcançar os 50 associados. Quanto mais pessoas envolvidas, maiores as chances de crescimento para todos”, diz.
Conflitos
Apesar da experiência bem-sucedida de alguns vilarejos, a criação do Parque Nacional (Parna) das Sempre-Vivas gerou conflitos que restringem o desenvolvimento regional. Existem, por exemplo, grandes propriedades particulares dentro do parque— duas delas são Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) —, e áreas de terras que, de acordo com o Estado, são devolutas, pertencentes a União. Há, em determinados lotes, a incidência de posseiros. Alguns alegam ter direito a eles por usucapião, porém nem todos possuem documentação. O imbróglio ultrapassa as fronteiras da Unidade, multiplica demandas, gera crise de interesses e um desajuste econômico que coloca em risco a dinâmica social das comunidades.
Segundo Márcio Lucca, biólogo e chefe do PARNA das Sempre-Vivas, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão públicoresponsável pela gestão da UC, está aberto ao diálogo. “Para regulamentar o uso das propriedades, construímos um termo de compromisso junto com a população. Oproprietário que ainda não foi indenizado tem o direito de continuar utilizando a terra. O que não pode é aumentar a sua atividade dentro dela”, reitera.
Cultura popular extrativista
As flores nativas do Cerrado são um patrimônio natural indissociável da cultura popular dos altos da serra. Antônio do Carmo Alves, conhecido como Antônio de Zé Basílio, sempre viveu da lida nos campos. Hoje, aos 71 anos, o senhor de face alongada delega a função. O pessoal que contrata passa semanas coletando sempre-vivas pé de ouro nas beiradas das lapas, um tipo de caverna. “Nós tiramos 1.200 quilos por safra”, conta. É uma jornada solitária a dos coletores, que se embrenham nas mataspara recolher do solo a matéria-prima que sustenta muita gente.
Houve tempo em que uma colheita rendia toneladas. Contudo, o esvaziamento dos campos reduziu consideravelmente a pesagem. Zé Basílio extrai as flores de forma artesanal, mas, como tantos, aprendeu a manusear da forma correta. O que surte efeito. O coletor devolve as sementes ao chão. Na temporada de floração, retorna sempre ao mesmo lote,que afirma ser seu por usucapião. “O terreno de três mil hectares foi integrado ao parque, mas eu ainda não recebi nada por ele”, diz. Zé Basílio relata que já teve muitos problemas com funcionários do ICMBio por conta da prática extrativista. “Uma vez, bateram na minha casa, ameaçaram me prender. Eu colhi flor a vida inteira no meu terreno, e só vou parar nodia que eles tratarem da minha família. Caso contrário, vou continuar colhendo.”
O atual chefe do Parque enfatiza que a regularização da atividade compete a órgãos como a Superintendência Regional de Regularização Ambiental (Supram), do ponto de vista metodológico, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), do ponto de vista comercial. “Os campos de sempre-vivas da região que integra o Mosaico estão sendo georeferenciados. Precisamos de um contato direto com a problemática para entendermos o contexto regional. Hoje, é mais fácil licenciar para plantar eucalipto do que regularizar uma atividade extrativista. Essa lógica é esquizofrênica para a preservação ambiental”, diz Lucca.
Comércio sem fronteiras
No Espinhaço, a pujança da natureza garante uma expressiva variedade de espécies. São mais de 180 entre flores, frutos e folhas coletadas para fins de comércio. Adolfo Cirino Pereira, o Toco, é o principal atravessador e comerciante de flores local. De origem humilde, o senhor de prosa ligeira controla mais de 60% do mercado de sempre-vivas na região do Mosaico.
Natural de Conselheiro Mata, com cinco anos o descendente de índio já colhia flores. Na mocidade, Toco começou a comprar para revender. “Conheci um comerciante alemão chamado Schneider, de Joinville, Santa Catarina. O homem veio para o Brasil fugido da guerra. Na época, se interessou pela venda de flores e passou a exportar”, recorda. Schneider se tornou o maior exportador de sempre-viva do Brasil. “Quando parou, passei a vender pra outros clientes e o negócio foi tomando forma”, diz Toco.
Cerca de dez tipos de flor possuem grande valor comercial. A pé de ouro, cujo quilo no mercado interno custa R$ 9,00 e no externo U$ 8,00, é a mais valiosa. Outras são a chapadeira; a sapatinha e a brejeira. Países como Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Holanda e Itália são os compradores de maior destaque. “Em 1982, comecei a investir nos primeiros campos. Hoje, tenho mais de 500 hectares de área cultivada”, comenta o atravessador. O maior deles se distribui por três fazendas em Augusto de Lima, a 70 km de Diamantina. O plantio rende a Toco uma safra anual de 30 toneladas. Do total, metade é exportada e metade comercializada para empresas varejistas de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Goiás,sendo as feiras do CEASA paulistano o principal polo de distribuição nacional. A legalização atual prevê a prática extrativista dentro de propriedades rurais. “Só é possível exportar flores de campos cultivados mediante autorização do IBAMA e registro no Instituto Estadual de Florestas (IEF)”, afirma.
Perspectiva real
Famílias inteiras dependem do manejo das flores no Espinhaço. Há uma cadeia geracional que com o apoio da sociedade civil organizada está conseguindo romper a barreira protecionista por meio de iniciativas cuja finalidade é a inclusão social. Em Galheiros, dona Maria e os seus sete filhos trabalham com o cultivo e a produção de artesanato a partir das sempre-vivas. Nos distritos de Andrequicé e Raiz, os moradores encontram solução para o impasse no resgate de espécies em extinção e na venda de exemplares envasados. O caminho a ser seguido pelas comunidades isoladas do Alto Jequitinhonha já aponta no horizonte.
A região de biodiversidade farta, que inspirou o paisagista Roberto Burle Marx, tem no vínculo do sertanejo com as flores a medida certa para a manutenção da cultura popular integrada à natureza. Há que se ter atenção a este movimento. Cabe ao Governo participar mais, criando políticas públicas que instrumentalizem as comunidades para que consigam se autogerir sem que precisem abrir mão da prática extrativista. Afinal, preservar o meio ambiente é tão importante quantoestabelecer o homem na zona rural, lar para uma vida digna. Nos campos mundialmente conhecidos como o jardim do Brasil, a tradição tem um espaço de direito que deve ser assegurado hoje para que a perspectiva de futuro dos residentes seja a damultiplicação e não a do desaparecimento.
Serviço
Serra Sertão Expedições e Vivências
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