Fotografia
Ecos da tragédia de Mariana
“Aquilo que havia restado lá, as memórias que tinham restado, testemunhos silenciosos dessa tragédia.”
Por Sílvia Helena Laporte
Fotos: Christian Cravo
No armarinho do banheiro, uma escova de dente azul e outra vermelha; a boneca está curiosamente enrolada em medalhas; no varal de arame farpado, emboladas, peças de roupa difíceis de identificar e um pé de tênis. Imagens prosaicas do cotidiano familiar que ganham um ar onírico e surreal pelos tons terrosos que as cobrem todas. Ecos de uma tragédia de melancólica beleza estética.
No livro Mariana (edição independente, 2016), o fotógrafo Christian Cravo, 42 anos, registra as consequências do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), de um ponto de vista muito pessoal: “O dever de um artista é testemunhar e interpretar a realidade”, diz. Optou, então, por retratar “aquilo que havia restado lá, as memórias que tinham restado, testemunhos silenciosos dessa tragédia”.
Na obra de Cravo, a fotografia é um veículo de expressão artística. Nos ensaios, ele busca a beleza que se revela na estranheza, para contar histórias da humanidade, sejam elas religiosas, sejam ambientais ou trágicas, como em Testemunhos do silêncio, uma reflexão sobre os efeitos devastadores do terremoto que devastou o Haiti em 2010.
A catástrofe, o sofrimento, a perda, a morte estão presentes tanto em Testemunhos do silêncio quanto em Mariana. Ambos remetem a uma conversa que Cravo teve com o avô, quando iniciava a trajetória profissional, a respeito de um livro de um fotógrafo americano sobre a libertação do Haiti nos anos 1980. “No meio dele, uma foto agressiva mostrava um pedaço de corpo mutilado no asfalto, e meu avô (o artista plástico baiano Mário Cravo Júnior) disse que ela não era necessária”, lembra.
Para Cravo, quando se fotografa uma catástrofe é importante buscar o equilíbrio, sem banalizar a tragédia: “Sempre me incomodou a sensação de que a dor humana possa servir de ponte entre um comercial e outro. Depois do terremoto do Haiti, não fotografei cadáveres, temos como mostrar a dimensão da tragédia de outra maneira”, explica. No ensaio Mariana, a lama que cobre o cenário agrega um toque fantástico às fotografias. Como bem define o autor, “é um livro poético, mas a dor está lá, embora respeitosa”.
Quando viu no noticiário as primeiras imagens do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, na tarde de 5 de novembro de 2015, Christian Cravo teve a mesma reação de milhões de outros cidadãos brasileiros. “Fiquei estarrecido, chocado com a falta de senso cívico de governantes e empresas”, lembra. Logo, porém, chamaram a atenção dele as imagens aéreas do rejeito descendo para o vale, belas, apesar do horrível significado. “Percebi que tinham a ver com o trabalho que venho fazendo”, diz. O artista tomou o lugar do cidadão, indagando, refletindo, interpretando o ocorrido por outra perspectiva. “Achei o momento importante na história do Brasil, uma tragédia que representava o desdobramento da falta de responsabilidade política”, diz. E, como já vinha questionando a estética do trabalho que realizava e queria trabalhar mais no país, pensou em seguir para Mariana. “Mas, naquele momento, a equação não bateu, tinha que alugar helicóptero, fazer um investimento que não tinha condição de fazer na época”, explica. Passado um mês, a situação mudou. “Vi a imagem do retrato de um casal na única parede que havia restado de uma casa atingida pela lama, e caiu a ficha: era essa a abordagem. Então, fui a Minas”.
Vaza mais que lama e que caos
Ao voltar para São Paulo, onde mora com a mulher e três filhos, começou a trabalhar num panfleto, “mas, aí, veio o perfeccionismo, aliado à vontade de fazer um tributo à dor dessas pessoas”, diz. O projeto ganhou outra dimensão, seria uma obra que sobreviveria à tragédia: “num futuro distante, quando essa história estiver esquecida, alguém vai ter a oportunidade de ver o que aconteceu, porque a arte sobrevive, levando o factual junto”, explica o fotógrafo.
Convidou, então, dois colaboradores de peso. O jornalista brasileiro radicado em Nova Iorque Patrick Brock descreve e contextualiza os fatos, em texto assim encerrado:
“Mariana foi o epicentro do desastre, dando ao ato de registrar suas ruínas um papel importante na documentação do horror, mas também de torná-lo menos impessoal . Enquanto se discute a culpabilidade, a única certeza é a ausência dos que morreram e a ruína de suas vidas. Documentar seus retratos borrados, artigos pessoais manchados e casas destruídas é como relembrar as vítimas na retina de quem vê seus fragmentos. É como dizer aos que perderam entes queridos ou suas casas que sim, a vida deles vale algo, muito mais que uma sirene ou bilhões de dólares. Ela vale o esforço da memória e do luto de uma nação inteira”.
O outro texto é assinado pelo artista plástico e ativista ambiental Bené Fontelles, coordenador do Movimento Artistas pela Natureza, que diz, em um trecho:
“Cravo não só dá testemunho da dor, mas da transcendência entre a beleza estética que pontua a tragédia e a arte que não pode prescindir do imenso de uma verdade poética… Não são simplesmente fotografias destes rastros e restos… Mas a revelação do extraordinário quase místico de pedaços do que ficou oculto no íntimo das casas mineiras que pareciam esperar a eminente tragédia… Não o registro do sinistro, mas um sentido vasto de abandono que no ‘oculto do mistério se escondeu’ (citação a Caetano Veloso)… Retratos de uma Minas que não só dói, mas incomoda no roto retrato e dele vaza mais do que lama e do que caos… Vaza do avesso uma imensa,triste solidão…”.