O escritor argentino Julio Cortázar, numa análise sobre a escrita do conto literário utiliza como analogia para a escrita da narrativa curta o ato de fotografar. Para o escritor, tanto a foto quanto o conto podem ser vistos como limitação de uma imagem ou acontecimento. Porém, essa limitação aparente acaba por revelar, muitas vezes, uma realidade que transcende o campo que o texto ou a câmara abrange.
Marcos Amend, curitibano de 50 anos, comprova a teoria, já que aos 14 anos, ao ver uma foto do Ansel Adams — uma imagem de uma montanha chapada no Yosemite National Park, na Califórnia, o Half Dome, com uma lua cheia ao fundo em preto e branco —, descobriu, sem querer, o que seria sua vida e profissão. Um recorte que o levou para uma realidade a qual não consegue mais viver sem: aquela na qual se relaciona com a natureza por meio da fotografia. Trinta anos depois, fotografaria ele mesmo a montanha.
A foto foi o gatilho, mas a história começa antes, quando o pai, depois de muita insistência, resolveu dá-lo uma câmera manual esquecida no guarda-roupa. Desde então, o hoje fotógrafo e ambientalista, começou a fazer “um monte de foto ruim”, como ele mesmo diz. Modéstias à parte, foi a partir destes experimentos que Marcos se tornou não só um exímio fotógrafo, mas um ambientalista consciente e cuidadoso ou, nas suas palavras, um “amante da natureza” que tem a câmera como uma das formas de se relacionar com o meio.
CAMINHOS NADA LINEARES
Entretanto, Marcos não definiu-se logo no início. Sua trajetória nada linear pode ser a prova de que alguns céticos precisam para acreditar na predestinação. Amend Iniciou o curso de Engenharia, graduou-se em Letras, especializou-se em Administração, até que, em 1997 ingressou no mestrado de Engenharia Florestal, na sua cidade natal. Neste percurso, a fotografia caminhou paralela, como um hobbie que resultava em fotos constantemente elogiadas pelos amigos, mas ainda não tão valorizadas pelo fotógrafo: “minhas fotos não eram boas, as paisagens que eram bonitas. É diferente, existem fotos bonitas de alguma coisa e fotos de coisas bonitas”.
Até que, mais uma vez, atuou o acaso nem tão acaso assim, um amigo em vias de se mudar para o exterior, deixou com Marcos nada mais do que um laboratório de fotografia, o qual o fotógrafo levou para os fundos da sua casa. Ali, começou a revelar as fotos dos tempos de colégio, aprendendo as técnicas em livros e na prática — o que o levou a investir em equipamentos e a perceber, finalmente, que não apenas as paisagens que eram bonitas.
A NATUREZA, UMA PARCEIRA DE VIDA
A ligação com a natureza sempre existiu no gosto e na prática; seu vasto portfólio denuncia que para ele paisagens, fauna e flora são os ímãs que atraem sua câmera. “Ou é isso, ou é selfie”, brinca. O que quando jovem parecia apenas uma afinidade, tornou-se profissão. Marcos coleciona experiências que seriam cada qual dignas de um livro (de fotografia, mas certamente também de histórias). Desde viver um ano e meio dentro da Reserva de Desenvolvimento sustentável Mamirauá no Amazonas, em 2001 — onde teve contato com fotógrafos de várias partes do mundo — a se pendurar, em janeiro de 2013, no alto do mastro de um veleiro para ter a melhor imagem da Antártica.
A fotografia virou, portanto, a sua arma branca para impulsionar e divulgar projetos: “o trabalho com conservação me levou a lugares remotos e as fotografias me permitiram divulgar projetos importantes”, conta. Por lugares remotos entende-se partes nunca exploradas e fotos nunca antes tiradas. Como numa expedição feita na Serra da Mocidade, a qual foi lançado de pára-quedas numa região nunca antes explorada para catalogar fauna e flora. Nos dias que passou por lá, Amend conta que da plataforma montada em uma árvore, num local onde só a natureza habitava, tirou uma foto do amanhecer que, certamente, só ele tem.
Mas não se engane. Não bastam o lugar certo e a hora perfeita, é preciso mais do que paciência e coragem. Para Marcos, a receita é paixão, muita paixão. Só assim para percorrer, por exemplo, um percurso de 150 km, sendo 80 km a pé, dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol emRoraima; ou para esperar horas no sol, no balanço do bote, enquanto uma onça repousa na sombra, ignorando ser ela um objeto de desejo fotográfico.
A MELHOR FOTO PARA SE MORAR
Trabalhar com o meio ambiente abriu o mundo para sua lente. A própria mudança para Minas ocorreu devido ao convite do presidente de uma ONG americana que tinha interesse em atuar no Brasil. Aceita a proposta, em 2003 Marcos mudou-se para Belo Horizonte para atuar como diretor executivo da organização Conservação Estratégica, onde ficou até 2013.
Ao perguntar ao curitibano em qual foto sua ele moraria, a resposta veio rápido: “numa foto de drone que tirei da minha casa”. Marcos completa 15 anos de Minas, morando em Lagoa Santa, onde encontrou a distância certa da natureza e da cidade — esta última tida, hoje, apenas como lugar de eventuais encontros e resolução das inevitáveis burocracias cotidianas, “antes de ir para a cidade preciso de dois dias de preparo psicológico” confessa. Marcos diz, ainda, ter sido Minas o primeiro lugar onde quis ter uma casa própria, uma raíz. Para ele, a culpa é do cerrado e da sua savana tão agradável.
Porém, criar raízes não significa ficar parado. Pelo contrário, é como se a casa fosse o lugar para se voltar. Quem conhece o fotógrafo já está acostumado a ouvir relatos de paradeiros dos mais exóticos e desconhecidos. Ao conversar com Marcos fica fácil perceber que não é só de fotos que vive um fotógrafo, mas de narrativas. Ele mesmo relata que algumas fotos existem apenas na história, na possibilidade não concretizada do clique, como quando um filhote de baleia franca exibe-se colada ao seu bote e ele não estava com a lente apropriada. O que poderia ser uma foto, torna-se um conto, o qual, por sua vez, se expande para uma história de vida digna de muito mais caracteres.
Basta pouco convívio para perceber que humor, simplicidade e paixão são marcas registradas do fotógrafo — característica que, unidas aos acasos da vida, criou um ser humano capaz de nos presentear com amanheceres que ninguém nunca viu. Cortázar tinha razão: como um conto, uma foto é capaz de nos revelar para muito além do que podemos ver. Mas, para isso, é preciso a audácia de pessoas que, como Marcos Amend, faz o inimaginável para nos trazer esse recorte.