Provavelmente, nenhum outro campo cultural represente melhor um povo que a história de sua alimentação. A maneira de suprir a necessidade mais básica do ser humano é única e exclusiva, dependendo das origens dos habitantes locais e das possibilidades que aquela terra oferece. E Minas Gerais parece abençoada. Nessas bandas de terreno montanhoso e regado por caudalosos rios, brotam riquezas que enchem pratos e paladares numa mescla de sabores e tradições de dar gosto.
Reportagem Marcela Vilas Boas
Fotos Beto Eterovick/Cézar Félix
E que o viajante desavisado não estranhe quando chegar a uma casa mineira: nas terras desse povo ressabiado, mas hospitaleiro, a entrada grande se faz pela cozinha. Esqueça as formalidades da sala de estar e os ditos bons costumes de outros cantos do mundo. A vida em Minas acontece em torno da mesa e das inúmeras possibilidades que saem dos fornos e fogões constantemente fumegantes. Comer bem e manter as mesas repletas de quitutes são aspectos fundamentais nessa cultura cheia de temperos, ora apimentados ora cheios de doçura.
Para conhecer Minas Gerais, é preciso mergulhar também na gastronomia. Tarefa deliciosa em qualquer rincão do estado. A grandiosidade da culinária mineira não é mera casualidade. A história da terra do ouro e dos diamantes e a vida sofrida de mineiros, tropeiros e da população isolada fizeram da criatividade uma necessidade na hora de se garantir a alimentação de sua gente. Para os imigrantes que adentravam Minas em busca de riquezas e de uma nova vida, era preciso aprender a tirar proveito do que o ambiente oferecia, sem nunca deixar para trás as técnicas e receitas oriundas dos locais de origem, seja de outras partes do Brasil seja mesmo do além-mar. E foram justamente a distância do litoral e, consequentemente, dos suprimentos que chegavam ao país, e as dificuldades para atravessar o duro caminho que levava Minas às vilas emergentes as principais responsáveis por criar uma dieta especial e que ainda hoje caracteriza a gastronomia local.
Sobrevivência
Minas Gerais guardava riquezas inimagináveis. Dos rios, brotavam minas de ouro e pedras nunca antes vistas com tamanha abundância. E a população aumentava de forma vigorosa. Garantir a alimentação durante todo o ano era uma tarefa árdua. A agricultura e a pecuária em um terreno hostil e montanhoso ainda engatinhavam, e a produção era escassa.
Pelas matas e no sobe e desce dos morros que caracterizam Minas, iam os tropeiros, no vaivém responsável por levar suprimentos às cidades recém-formadas. O caminho era penoso e longo. Durante o trajeto, os homens vindos do Sul do país traziam consigo carne salgada, ideal para aguentar os largos dias de travessia. Pelo caminho, juntava-se a iguaria ao feijão e à farinha de mandioca. Nascia, assim, o feijão tropeiro, um dos mais emblemáticos pratos da culinária mineira. Nas grandes fazendas do Norte do estado, a receita foi aperfeiçoada e ganhou requinte com a inclusão de cebolas, linguiças e ovos. A carne também passou a ser salgada na própria região, utilizando-se menos sal, e, com a ajuda do sol escaldante que castiga a região, obteve-se, como resultado, uma peça mais suculenta. Surgia a carne de sol, carro-chefe da gastronomia norte-mineira.
A conservação dos alimentos sempre foi um desafio primordial em Minas. De Portugal, os imigrantes traziam consigo diferentes técnicas para garantir a provisão de comida durante todo o ano. No interior do estado, iniciou-se a criação de suínos, mais fáceis de se manejar e de abate mais rápido. Do porco, aproveitava-se da carne ao couro. O que sobrava era preparado em forma de embutidos variados, e a conservação se dava com a defumação, já largamente utilizada no norte da Península Ibérica, ou mesmo utilizando-se a própria gordura do animal, dando origem à carne de lata. Já os bovinos, aos poucos, foram introduzidos no Sul de Minas, destinados quase que exclusivamente para a produção de leite.
O clima ameno e a qualidade do solo e da cobertura vegetal daquela região conferem ao leite qualidades especiais, sabor e textura únicos e fundamentais para a elaboração do queijo Minas. A técnica de fabricação do produto, também herdada dos portugueses, chegou ao estado na tentativa de se reproduzir por aqui a iguaria tão apreciada pelos lusitanos. A mistura do leite fresco de vaca com o coalho, muitas vezes procedente de capivaras, resultou em um laticínio único e que hoje é patrimônio imaterial e parte importante da dieta de Minas Gerais, que conta com mais de 800 laticínios.
Pão sem farinha
A fartura que se vê hoje na cozinha mineira, com as mesas sempre repletas de delícias e quitandas, em nada se assemelha ao que viveu o povo no início e no auge da formação do estado. A riqueza que resplandecia das minas de ouro não era refletida em sua população pobre e fatigada pelas péssimas condições de vida.
Entre o final do século XVII e o início do século XVIII, a população de Minas passou por um largo período de fome. Escravos e indígenas responsáveis pelo árduo trabalho de busca por ouro eram, obviamente, a parcela da população que mais sofria com a falta de comida. Da necessidade e com a ajuda dos conhecimentos de suas próprias culturas, tão diferentes da trazida pelos europeus, os primeiros mineiros aprenderam a aproveitar o que a terra lhes oferecia e, juntos, foram os responsáveis pela constituição da gastronomia mineira.
Foi justamente com os índios que o mineiro aprendeu a fazer milagres com a mandioca. A cultura europeia, de dieta fortemente baseada no consumo do pão, sentiu o rigor do clima cálido ao adentrar Minas em busca de fortuna. O trigo, usado na produção da farinha, não tinha, nessas terras, ambiente fértil para crescer, e a importação era inviável e cara. Com técnicas aprendidas da população indígena, foi possível desenvolver o polvilho e criar, assim, um excelente substituto para a fabricação de pães, biscoitos e bolos. Misturado com ovos e leite, resultava em broas e roscas saborosas; com a adição do queijo, surgiram os esponjosos e perfumados pães de queijo.
Além da mandioca, o milho ganhou destaque nas panelas e receitas mineiras frente à escassez de outros produtos. Versátil, o chamado “ouro em penca” era utilizado em preparos doces e salgados ou até como espessante de molhos antes insossos e ralos. Surge o angu, parente pobre da polenta, mas não menos saboroso, a broa, a canjica e a pamonha, pratos que atualmente seguem encantando paladares de nativos e visitantes de Minas Gerais.
A criação de animais para consumo ainda era precária. Para suprir as necessidades de carne, os negros começaram a caçar o que a fauna oferecia: tatus, capivaras, aves selvagens ou lagartos. Diferentemente do que acontecia com as receitas introduzidas pelos imigrantes europeus, em geral de características secas, as preparações ganharam caldos consistentes e eram consumidas em forma de uma espécie de sopa calórica, ideal para sustentar o corpo no pesado trabalho da mineração. Para incrementar os pratos, era comum adicionar outros elementos facilmente encontrados na região, como o quiabo, o ora-pro-nóbis, o palmito ou o agrião.
Tesouros do Cerrado
Os abusos sobre os escravos em Minas tiveram proporções avassaladoras. O trabalho era exaustivo e em condições ainda mais insalubres que no restante da colônia. Em busca de liberdade, muitos fugiram pelas matas e tentaram iniciar uma nova vida. No entanto, manter-se escondido e vivo não era fácil. Além das fugas incessantes, era preciso alimentar o corpo. À primeira vista, o Cerrado pode parecer um cenário de pouca vida, retorcido e infértil. Mas era preciso se alimentar. E a flora escondida entre os retorcidos e baixos troncos da vegetação esconde tesouros gastronômicos muito bem aproveitados pelos escravos daquela época e, até hoje, pela população local.
É nessa paisagem ocre que cresce, por exemplo, o pequi, fruto de amarelo-ouro brilhante e sabor inconfundível, que alimentou escravos fugidos e agora emana dos fogões do centro-norte mineiro. Rico em vitaminas A e C e em potássio, é a estrela principal de receitas de arroz, compotas e licores. Ao seu lado, outras delícias ainda surpreendem os viajantes. A imponente jabuticabeira, com o tronco repleto de pérolas negras lustrosas que surgem depois das chuvas. Ao seu lado, a gabiroba, de sabor delicado e sutil, ou a grandeza do buriti, a doçura rósea da goiaba ou a perfeita silhueta da pitanga.
O doce amargor da cachaça
A produção de cana-de-açúcar, em princípio focada no litoral brasileiro e nas proximidades dos portos exportadores, adentra Minas Gerais e, aos poucos, começa a substituir o mel, ganhando espaço no receituário local. Misturado ao leite fresco, seguindo receita europeia, transforma-se em doce de leite. As frutas nativas, como a goiaba, também agora são protagonistas e, além de suprir os desejos pelo sabor adocicado, demandam outra forma de conservar o produto por períodos mais longos, as geleias.
Por outro lado, dos engenhos mineiros, inicia-se o aprimoramento da cachaça. A bebida já era produzida na Bahia e, em 1635, a comercialização e até o consumo foram proibidos pela Coroa Portuguesa por competir com a importação do vinho e da bagaceira portugueses. Sem êxito, por fim, Portugal lança duros impostos sobre a bebida. Em Minas, divide-se a produção de cana entre açúcar, que já iniciava o período de decadência, e cachaça, utilizada até mesmo como moeda na colônia. A qualidade é aprimorada nas fazendas, armazenando-se a bebida em tonéis de madeira, seguindo o exemplo do já famoso rum caribenho.
Mas foi apenas no início do século XX, com os movimentos modernistas no país, que a cachaça abandonou a imagem de baixa qualidade e transformou-se em referência gastronômica. Com a valorização da cultura nacional, bandeira levantada a partir de 1922 por artistas, arquitetos e pensadores, perde o rótulo de produto inferior e invade os grandes centros urbanos como legítima bebida brasileira. Hoje, Minas Gerais é referência na produção da cachaça, com mais de 8.000 alambiques em todo o estado.
A boa cachaça mineira, como toda a gastronomia de Minas, é apreciada com tempo, devagar, seja para esquentar o corpo nas noites frias das serras seja como aperitivo entre prosas descompromissadas, diante de mesas sempre repletas de delícias que surgem dos fogões que nunca se apagam, entre panelas de barro ou tachos de cobre, onde borbulham aromas capazes de hipnotizar os mais exigentes paladares.