Igrejas de São Francisco de Assis, obras-primas de duas épocas


Vista do interior da Igreja de São Francisco de Assis de Belo Horizonte (igrejinha da Pampulha), obra-prima de Oscar Niemeyer.

Obras-primas de duas épocas e de todas as eras

Apesar do culto ao mesmo santo, as igrejas de São Francisco de Assis em Ouro Preto e em Belo Horizonte vêm de tradições muito distintas. De um lado, o barroco, com sua decoração fina e luxuosa. Do outro, o modernismo, com sua arquitetura simples e elegante. Obras-primas de momentos artísticos igualmente importantes para o Brasil atraem multidões de turistas todos os anos.

Reportagem Juliana Afonso e Rita de Podestá
Fotos Eduardo Gontijo

Vista do interior da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto, obra-prima de Aleijadinho.

Ainda jovem, dentro da igreja de São Damião, Giovanni ouviu a voz de Cristo, que lhe pedia para reconstruir o templo no qual rezava. Ele voltou à sua casa, apanhou diversos tecidos finos da loja de seu pai, os vendeu no mercado da cidade e entregou todo o dinheiro ao padre. O pai, furioso, mandou que o buscassem. Com medo,Giovanni se escondeu em um celeiro. Tempos depois, em uma tentativa de revelar o seu desejo de servir à igreja, seu pai o acorrentou em um porão. Ao ser solto por sua mãe, tentou buscar o bispo local, mas foi novamente capturado pelo pai que ainda exigia uma contrapartida pelos tecidos que havia vendido. Então Giovanni se despiu na frente de todos, como um símbolo de renúncia à sua herança, e partiu, nu, para uma vida junto à Igreja Católica.

Vista panorâmica da Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha: na sua arquitetura não há vigas ou pilares estruturais, mas arcos e abóbadas de concreto armado, que revela grandes vãos.

Desde então, o jovem Giovanni — também conhecido como Francisco devido a um apelido de infância — levou uma vida de devoção e fé. Mais do que isso, renovou o catolicismo de seu tempo por meio das próprias ações. Inspirado pela vida de Cristo, viveu de maneira itinerante e em estado de extrema pobreza, pregando a palavra do evangelho e sempre interessado em ajudar os pobres e miseráveis.

“Ninguém é suficientemente perfeito, que não possa aprender com o outro e, ninguém é totalmente destituído de valores que não possa ensinar algo ao seu irmão”.

Francisco morreu na cidade de Assis, em 1226, e foi canonizado dois anos depois como São Francisco de Assis. Sua postura e seus ensinamentos reverberam ainda hoje, tanto na Igreja Católica quanto no imaginário popular. Desde então, o mundo inteiro reza missas, batiza cidades e constrói templos em sua homenagem. No Brasil não foi diferente. Mas entre as muitas igrejas dedicadas ao santo, algumas merecem destaque e são testemunhas de tempos históricos. Representam a fé, mas também ilustram, por meio da arte, a história do país.

Vista da Igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto: concluída em 1810, não tinha como ficar nada menos do que primorosa.

Construir igrejas

Durante o período colonial, nenhuma cidade crescera tanto e tão rápido quanto a curvilínea Ouro Preto de Minas Gerais. A abundância de ouro e metais preciosos fez com que milhares de pessoas se dirigissem ao local em busca de enriquecimento fácil e possibilidades de negócio. Dentre elas também estavam as elites portuguesas e brasileiras, culturais e políticas. E também as religiosas. Nessa época, o Catolicismo era parte integrante não somente da cultura local como também do próprio poder governamental.

Um dos belos quadros da via-sacra de Portinari na igrejinha da Pampulha.

A construção de igrejas era uma forma de retribuir as graças alcançadas e também de mostrar poder. Cada irmandade—instituições religiosas compostas por leigos, cujo objetivo era ajudar os seus membros e a comunidade, porém com obediência às regras sancionadas pela Igreja Católica — buscava construir a sua igreja, no alto das colinas que compunham a cidade, sempre o mais bonita e luxuosa possível. É nesse contexto que se dá a construção da Igreja de São Francisco de Assis. A Ordem Terceira da Penitência de São Francisco de Assis, primeira ordem criada na então Vila Rica, reunia os nomes mais importantes da sociedade. Os membros se encontravam em outras igrejasaté que, em 1762, começaram a cogitar a possibilidade de construir o próprio templo.

Detalhe da perfeição da arte barroca em um painel lateral.

Primoroso modelo do barroco

As obras começaram em 1766, auge da exploração aurífera em Ouro Preto. Para sua realização foram contratados os dois artistas mais prestigiados da época: Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como Aleijadinho, responsável pelo desenho e projeto da igreja; e Manuel da Costa Ataíde, ou Mestre Ataíde, responsável pelas pinturas. A igreja de São Francisco de Assis, concluída em 1810, não tinha como ficar nada menos do que primorosa.

Partes do templo foram restauradas nos anos de 1883 e 1925, mas não com a devida atenção. Por isso foi necessária uma recuperação ampliada, como aconteceu em 2001. No projeto foram restauradas diversas partes do altar-mor, dos seis altares laterais e do assoalho —que visavam, em sua maioria, a fixação de peças que se desprenderam e a limpeza e recuperação de cores e texturas originais.

Manuel da Costa Ataíde, ou Mestre Ataíde, responsável pelas pinturas, como do teto.

O cuidado com o templo é fundamental: além de ser uma das construções mais importantes de Ouro Preto, primeira cidade brasileira a receber o título de Patrimônio Cultural Mundial, conferido pela Unesco, em 1981, ele é também uma das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no mundo. “A igreja de São Francisco de Assis é o mais perfeito modelo do Barroco Mineiro”, afirma o bispo emérito da Diocese de Oliveira, em Minas Gerais Dom Francisco Barroso Filho.

Obra-prima

Dona de contornos inovadores, ornamentos requintados, esculturas delicadas e pinturas vibrantes, a igreja de São Francisco de Assis impressiona. Vários elementos contribuem para que ela seja considerada por muitos a obra-prima do Barroco Mineiro.

Mas para compreender o que foi o Barroco Mineiro, é preciso entender a chegada desse estilo artístico no país e o seu progressivo “abrasileiramento”. O estilo barroco começou na Itália, no final do século XVI,e chegou ao Brasil em meados do século XVIII.  Entre as suas características mais fortes estão a dramaticidade, o realismo e a exuberância, principalmente no que concerne aos elementos decorativos.

Vários elementos contribuem para que a Igreja de São Francisco seja considerada por muitos a obra-prima do Barroco Mineiro.

Por muito tempo o barroco feito no Brasil foi visto como inferior, mesmo o de inspiração portuguesa, devido à falta de formação dos artistas locais e a maneira rudimentar com a qual os artesãos trabalhavam. Os primeiros mestres eram, inclusive, portugueses e traziam consigo o“saber-fazer” tradicional. Às iniciais manifestações do barroco no Brasil, que acontecem entre 1710 e 1730, denomina-se primeira fase; o estilo é marcado por pequenas capelas com colunas retorcidas, revestimento em talha dourado e pinturas com tons de azul e vermelho.

Barroco Mineiro

Com o passar dos anos, a exploração do ouro atinge seus mais altos níveis, refletidos no rebuscamento artístico de maior parte de suas construções. Templos de fachada neoclássica, excesso de elementos decorativos e policromia em branco e dourado são alguns dos elementos mais fortes da chamada segunda fase do barroco, que vai de 1730 a 1760.  Foi nesse período que o uso do ouro foi mais acentuado. A Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar, também em Ouro Preto, é um exemplo claro do barroco desse período.

Branco e dourado são alguns dos elementos mais fortes da chamada segunda fase do barroco, que vai de 1730 a 1760.

A partir de 1760, a arte feita no Brasil é elevada a outro patamar. A mistura de influências artísticas, a produção de esculturas a partir de matérias-primas locais — com destaque para a pedra-sabão — e a liberdade com que os artistas locais desenhavam, fizeram com que se desenvolvesse uma arte original, diferente de todas as outras. É por isso que aterceira-fase do barroco também é conhecida como Barroco Mineiro. “Os elementos básicos continuam os mesmos, mas o modo de trabalhar é mais livre, não está preso às formas tradicionais”, afirma Ivo Porto de Menezes, professor da Escola de Arquitetura da UFMG e da Escola de Minas de Ouro Preto.

O estilo é chamado por muitos de Rococó, no qual as principais características são a quebra de ângulos retos, a troca do detalhamento excessivo por uma maior leveza decorativa e a profusão de flores, laços, guirlandas e elementos circulares.Com um passeio minucioso pela igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, é possível encontrar todas estas peculiaridades.

Requinte artístico

Se o Barroco Mineiro é uma das primeiras expressões artísticas originalmente brasileiras e se a Igreja de São Francisco de Assis é tida como o melhor exemplar desse estilo artístico, visitar o templo é conhecer um dos fundadores de uma estética que prima pela originalidade. De fato, Aleijadinho utilizou recursos arquitetônicos incomuns aos templos mineiros. A fachada e o corpo principal possuem formas arredondadas e as duas torres estão recuadas, ao contrário das igrejas da época até então.

Ainda na fachada, anjos apontam para brasões da coroa portuguesa e da ordem franciscana, que sustentam a imagem da virgem Maria. É curioso observar que a virgem leva uma tipoia no braço direito,assim como usava Aleijadinho. No medalhão acima, uma representação de São Francisco de Assis no Monte Alverne, local onde o santo teria recebido os estigmas.Todos esses elementos foram esculpidos em pedra-sabão.

Segundo o guia de turismo Walmir Pereira Gonçalves, a fachada apresenta referências militares. “Os óculos laterais remetem às construções militares, cujo objetivo era facilitar a vigília. As duas torres frontaisaludem à forma de canhões e as cúpulas lembram capacetes usados na idade média. Todos esses elementos podem ser interpretados como uma alusão deAleijadinho à idade média, quando viveu São Francisco”, explica.

o Barroco Mineiro é uma das primeiras expressões artísticas originalmente brasileiras.

Espetáculo a parte

O interior da igreja é bastante detalhado. Os seis altares laterais são ornamentados ao melhor estilo rococó, cheios de flores e guirlandas, muitas delas revestidas com talha de ouro. O fundo dos altares e as paredes da igreja levam as cores branco e dourado, tons que proporcionam maior leveza à obra.

Na capela-mor está representada a Santíssima Trindade, com a virgem ao centro, coberta por uma abóbada de madeira com quatro medalhões, um em cada canto. Nas peças do altar é possível observar de perto as expressões faciais desenhadas por Aleijadinho, famosas pelos olhos mongóis, maçãs do rosto salientes e queixo bipartido.

Duas das suas principais obras dentro da igreja são os dois púlpitos, que ele — um um mulato, filho do mestre-de-obras português Manoel Francisco Lisboa com a sua escrava africana de nome Isabel —  realizou com a ajuda de três escravos. A presença de negros trabalhando na realização das obras chama a atenção de diversos especialistas. O historiador da arte Germain Bazin é um dos que admite essa surpresa, como descrito no livro “A arquitetura religiosa barroca no Brasil”:

Na capela-mor está representada a Santíssima Trindade, com a virgem ao centro, coberta por uma abóbada de madeira com quatro medalhões, um em cada canto.

“É surpreendente que a realização mais perfeita desse rococó português aconteça no Brasil, e não na metrópole, e que seja devida a um mestiço.”

A pintura do teto, feita pelo Mestre Ataíde, é um espetáculo a parte. Os tons de azul e vermelho foram amplamente utilizados para dar forma à representação de Nossa Senhora dos Anjos. As colunas, desenhadas em perspectiva, dão a impressão de que a santa se afasta cada vez mais do mundo terreno e se aproxima do mundo divino. Ao lado dela estão diversos anjos e querubins que tocam instrumentos e parecem festejar a elevação da santa aos céus. Ataíde pintou uma série de painéis laterais — que simulam azulejos portugueses —representando a vida de Abraão.

O investimento artístico efetuado na igreja não serviu somente à decoração do templo ou à fruição estética: era também uma maneira de atrair mais fiéis. Ainda hoje, a beleza das esculturas e pinturas faz com que um número significativo de pessoas visite a igreja, se encante com a arte e vivencie alguns dos preceitos católicos, independentemente da sua religião.

Detalhe do altar da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto.

Milhares de brasileiros e estrangeiros viajam para Ouro Preto todos os anos. Visitar a Igreja de São Francisco de Assis éum programa quase obrigatório. “O turismo e a devoção podem conviver muito bem, desde que um respeite as necessidades do outro”, afirma Ivo Porto de Menezes. O turismo é bem-vindo, mas é proibido nos momentos dedicados às missas e outras celebrações.

Entre Francisco

A mais de 100 km da Igreja de São Francisco de Assis, está outra igreja, do mesmo padroeiro: a Capela Curial de São Francisco de Assis, ou Igrejinha da Pampulha, em Belo Horizonte, como é popularmente conhecida. O século é outro. Sua conclusão data de 1943, mas, ainda assim, seu destaque na história da arquitetura, da arte e da fé é extremamente relevante.

Visão panorâmica do interior modernista da igrejinha de São Francisco de Assis.

Comparações só podem ser feitas à luz de uma rigorosa contextualização. Afinal, aconselha-se não confrontar ideias opostas sem que elas ao menos esbarrem no mesmo tema. No caso, falar sobre os templos religiosos de São Francisco de Assis em Ouro Preto e Belo Horizonte funciona se a questão for discutir estilos de época:arquitetônicos e artísticos. Assim, surge a possibilidade de caminhar sobre a trajetória do Barroco Mineiro até o Modernismo. Tradição versus desejo de ruptura. Esse último um movimento estético surgido na década de 20, caracterizado pela busca de uma mentalidade inovadora, nas artes plásticas, literatura e arquitetura.

“Tupi, or not tupi that is the question.”

O Modernismo foi um movimento artístico e cultural que teve seu início na Europa. Em solos tupiniquins, ganhou força a partir da primeira década do século XX. A República Velha, na qual vigorava a política do “café com leite”, depara-se com a ascensão de uma burguesia industrial. Urbanização, imigrantes europeus, classes média, operária e subproletariada — tudo se coloca em choque com o poder das oligarquias rurais.

Altar de São Francisco de Assis modernista.

Os intelectuais brasileiros se posicionam. As referências futuristas, surrealistas e dadaístas desembarcaram em São Paulo. Surge o repúdio à continuação das formas de arte do passado. Surgem os modernistas. Entre eles estão Mário de Andrade e Oswald de Andrade, articuladores da Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922. A professora Mônica Fonseca, coordenadora do Inventário do Patrimônio da Arquidiocese de Belo Horizonte, aponta para o conhecimento de Mário de Andrade acerca do Brasil como principal motivo da sua atuação no modernismo. O escritor nunca foi ao exterior, mas viajou por todo país. Possuía admiração pela cultura nacional e a desvendou como pôde. Suas referências influenciaram artistas a consumirem e a valorizarem sua própria cultura.

Foi o que fizeram. Em 1928, Oswald de Andrade, publica o ‘Manifesto Antropofágico’, que propunha alimentar-se do que o estrangeiro trazia, abrasileirando conceitos e ideias. “Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” O movimento ganhou adeptos. O objetivo era desapegar-se das tradições.

Historiadores dividem o Modernismo Brasileiro em três momentos. A 1ª fase, em 1922, apresenta a polêmica, a originalidade e o deboche — a quebra do tradicionalismo cultural. A partir da década de 1930 a arte amadurece e busca refletir a realidade popular brasileira. Já na última fase, a partir de 1945, a liberdade é almejada com fervor— as quebras já haviam sido feitas, como coloca Mário de Andrade em ensaio publicado em 1942:

Detalhe da arte moderna assinada por Cândido Portinari.

“E hoje o artista brasileiro tem diante de si uma verdade social, uma liberdade (infelizmente só estética), uma independência, um direito às suas inquietações e pesquisas que, não tendo passado pelo que passaram os modernistas da semana, ele não pode imaginar que conquista enorme representa.”

A liberdade foi bem empregada na arquitetura. Com influências de grandes mestres como Le Corbusier — suíço naturalizado francês — procurava-se a simplicidade e a limpeza da fachada —oposto ao barroco e sua preocupação com o enfeite e a ornamentação. Lúcio Costa,conhecido mundialmente pelo projeto do Plano Piloto de Brasília, foi personagem importante. Foi ele quem, mais tarde, junto ao também arquiteto Oscar Niemeyer, colaborou na difusão da arquitetura moderna no Brasil. Obras racionalistas,funcionais, com formas geométricas definidas. Vidros substituíam as tradicionais janelas, e o entorno passava a dialogar de forma intensa com a arquiteturapor meio das artes plásticas e do paisagismo.

Com o tempo, o paisagismo assume a técnica e torna-se um complemento à arquitetura de sua época Os registros mais remotos de jardins intencionais estão no Egito e na Mesopotâmia de 2.000 a.C., ligados à agricultura, e também à casa dos reis e faraós. Já o jardim moderno nasce com o olhar de Burle Marx, amigo de Lúcio Costa, sob a paisagem brasileira mesclada aos seus estudos artísticos na Europa. Influências que ganham repaginações tropicais — entretanto, muitas espécies eram importadas. Na teoria, uma necessidade de firmar as raízes brasileiras, literalmente.

Toda essa liberdade vivia seu ‘boom’ na década de 1940. Enquanto a Europa se encontrava em plena Segunda Guerra Mundial, Belo Horizonte adentrava na modernidade com a inauguração do complexo arquitetônico da Pampulha.

O complexo de lazer de JK

Uma lagoa artificial de 18 quilômetros de extensão. Ao seu redor, um museu, uma igreja, um parque de diversões, uma casa de baile, um zoológico e um dos mais tradicionais estádios de futebol do Brasil — onde hoje o time do Cruzeiro manda os seus jogos. Um cenário convidativo para uma caminhada, um passeio cultural, ou apenas uma pausa contemplativa. Essa é a Pampulha de hoje, cartão postal da cidade de Belo Horizonte. Centro de cultura, turismo e lazer. Acredita-se que Juscelino Kubitschek, se vivo, estaria satisfeito.

Inicialmente a Lagoa da Pampulha era um projeto do prefeito Octacílio Negrão de Lima, em 1936, com a finalidade de promover o abastecimento da cidade. Mas foi Juscelino Kubitschek quem desenvolveu o verdadeiro potencial do lugar. A lagoa foi o cenário perfeito para o projeto modernista do então prefeito JK em 1943:

“Em 1940, (…) depois de modernizar o calçamento, abrir avenidas espaçosas e criar novos bairros residenciais, tive minha atenção voltada para a Pampulha, lindo recanto paisagístico que poderia ser convertido, sem grandes despesas, num polo de atração turística”.

A região, que hoje engloba vários bairros, foi escolhida para ser um local luxuoso de lazer — cassino, lago para a realização de esportes náuticos (hoje algo impossível em função da má qualidade da água); um clube; uma casa de baile; e uma igreja dedicada a São Francisco de Assis, de quem o pai de JK era devoto. E uma casa de veraneio para o prefeito. Algo como um Great Gatsby mineiro.

As curvas da arquitetura do templo Patrimônio Cultural da Humanidade.

Para realizar a obra que se tornaria símbolo da capital, JK convidou talentos já aflorados: o carioca Oscar Niemeyer, os paulistas Cândido Portinari e Burle Marx e o mineiro Alfredo Ceschiatti. O então jovem arquiteto fez da Pampulha o berço da sua arte. Curvas e traços arrojados — do Iate Tênis Clube (1942), da Casa do Baile (1943), do Cassino (1943, hoje o Museu de Arte da Pampulha), e da igreja de São Francisco de Assis (1943). “Não havia razão para ser feita com esquadro, ela tinha que se voltar para a imaginação, utilizar a curva, fazer uma coisa dentro do que o concreto permite”, revelou o arquiteto que ainda se tornaria mundialmente famoso com a construção de Brasília. São também de sua autoria a casa de Juscelino Kubitschek (construída às margens da lagoa, em 1943, com paisagismo de Burle Marx), o Golfe Clube(1950) — hoje a Fundação Zoobotânica —, o Clube Libanês (1952), e o Pic – Pampulha Iate Clube (1961).

Deu certo. Hoje o local é referência mundial da arquitetura moderna brasileira. Espaços amplos, natureza, arte e, com o perdão do trocadilho, um belíssimo horizonte.

Nas curvas da obra-prima

Em dezembro de 2012, a Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Fundação Municipal de Cultura, retomou uma candidatura formalizada na UNESCO para tornar o complexo da Pampulha um Patrimônio Cultural da Humanidade. O complexo já é tombado nas esferas municipal, estadual e federal, sendo reconhecido e protegido pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Os recursos para restauração dos monumentos virão do Governo Federal, pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) das Cidades Históricas.

Curvas e linhas oblíquas estão em toda a Igreja — externa e internamente — uma assimetria elegante que revela a liberdade criativa do arquiteto.

Dentro das obras tombadas está a Igreja da Pampulha. Considerada a obra-prima do conjunto. São Francisco ganha nesse templo não uma estrutura com lajes de concreto apoiadas em pilares, de acordo com o que seria esperado da arquitetura religiosa. Curvas e linhas oblíquas estão em toda a Igreja — externa e internamente —uma assimetria elegante que revela a liberdade criativa do arquiteto.

“Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida.”.

Não há vigas ou pilares estruturais. Mas arcos e abóbadas de concreto armado, que revela grandes vãos. Estrutura até então utilizada apenas em obras de engenharia, como no hangar de aviões do aeroporto de Orly, em Paris. As duas maiores são o teto da nave e do altar. Na parte de trás, as menores, servem de apoio. Em contraste surge o campanário e a marquise da entrada, como elementos retilíneos, independentes, porém, interligados. As ondas se multiplicam em painéis curvos do artista Paulo Werneck nas paredes externas— feitos com pastilhas em tons de azul e branco. Já a parede do fundo, virada para a rua, é ocupada por um mural de São Francisco pintado por Cândido Portinari em azulejos, numa composição também branca e azul. O projeto se completa com o paisagismo de Burle Marx — curvo e repleto de respiros. “O jardim é uma natureza organizada pelo homem e para o homem”, disse o paisagista.

As ondas se multiplicam em painéis curvos do artista Paulo Werneck nas paredes externas — feitos com pastilhas em tons de azul e branco.

Portas de vidro integram a Igreja à reluzente paisagem exterior e levam até o interior a luz natural. O estreitamento da abóbada, na direção do altar, cria um jogo de luz entre o coro iluminado e a madeira escura que forra as curvas da nave. O altar abriga o mural de São Francisco, realizado por Portinari, e ocupa toda a parede interna do fundo. Ali, o santo se despe de suas vestes em sinal de desapego aos bens materiais — tudo retratado num forte caráter expressionista. Um elemento instigante é a imagem do cachorro ao seu lado ao invés do tradicional lobo. O artista quis utilizar-se de um animal que condizia com o cotidiano brasileiro. Para Mônica Fonseca, “o cachorro representa o mais fiel ser, generoso, desprendido, que entende o outro e fica ao seu lado independente de raça ou status social. Como pregava São Francisco”.

Via Sacra modernista

Cândido Portinari também cria a composição branca e azul de azulejos que ocupa as laterais baixas da capela na qual nadam peixes e voam pássaros. O azulejo está também presente no curvilíneo púlpito. A atenção da visão ruma para a Via Sacra— do latim Via Crucis, ‘caminho da cruz’— do mesmo artista, constituída por 14 painéis. Especialistas a consideram uma de suas obras mais significativas. A obra é, também, um rico exemplo de um tema clássico traduzido em modernidade, o que o artista fez como poucos outros.

Estão presentes, ainda, no batistério, os baixos-relevos de Alfredo Ceschiatti que retratam a expulsão de Adão e Eva do paraíso em grandes painéis de bronze. Uma verdadeira seleção da cultura modernista no Brasil.

Semelhanças com o barroco

Apesar de não exibir a escala magnífica das igrejas barrocas, a Igreja da Pampulha mantém o programa tradicional dos templos religiosos. O altar, o coro, o púlpito, a sacristia, o campanário. Mesmo os azulejos de Portinari possuem ligações com construções barrocas franciscanas e os seus azulejos portugueses. Boatos da época diziam que uma réplica da Igreja de São Francisco de Assis de Ouro Preto chegou a ser cogitada para ser construída na Pampulha. O curioso é que alguns arquitetos que estudam a obra de Niemeyer identificam mais semelhanças com o barroco do que a arquidiocese na época poderia imaginar. Alguns apontam que parâmetros e platôs ondulados remetem de alguma forma à ideia do barroco.

É claro que não há no Modernismo latente da Igreja da Pampulha a riqueza de detalhes do barroco, que faz com que cada ida à igreja revele um novo elemento artístico ou arquitetônico. Mas é possível sentir algo novo, novas sensações, cada vez que se vaià Igrejinha. Seja ao encarar o cachorro triste no altar, ao passear a vista pela Via Sacra, ou ao olhar para fora, por entre os vidros da porta de entrada. Dali pode se ver a lagoa, o turista curioso, o morador contemplativo ou um grupo de crianças que chegam afoitas em dia de excursão do colégio.

Detalhe da arte moderna.

O templo de arte ou de fé?

As autoridades religiosas da época questionaram a Igreja da Pampulha e consideraram que o templo dedicado a São Francisco de Assis era inapropriado para as práticas religiosas. Enquanto isso, com apenas dois anos de existência, a Igreja e suas obras foram inscritas no Livro de Tombo das Belas Artes do Serviço do Patrimônio Artístico e Nacional — um fato inédito. O reconhecimento como espaço religioso só se deu 15 anos depois, em 1959. Juscelino Kubitscheck era então presidente do Brasil.

Não se sabe ao certo o motivo da proibição. Alguns afirmam que a forma da edificação ia contra as tradições da igreja. Outros alegam que os quadros da Via Sacra, afrescos e azulejos de Portinari não estavam de acordo com a tradição católica de representação dos santos, como na resposta dada pelo então arcebispo, Dom Antônio dos Santos Cabral.

“Acredito que tanto os adeptos do modernismo como os defensores da arte antiga, do chamado academicismo, estão com razão, pois todos lutam pela evolução artística. Mas, para um templo, aquilo não fica bem; não podemos desvirtuar a obra do Senhor nem a igreja é lugar para experiências materialistas, embora artísticas”.

Houve uma reação conservadora que criticou todo o complexo: os jogos no cassino, os trajes de banho em público na beira da lagoa e os bailes promovidos por Kubitschek. Mas o principal alvo foi mesmo a igreja. A ligação de Niemeyer e de Portinari ao Partido Comunista também era questionada. Jornais diziam que, refletida na lagoa, a igreja tinha a forma da foice e do martelo da bandeira soviética.

Felizmente, o tempo é mutável. Hoje, o atual Sacerdote Ademir Ragazzi, responsável pela Igreja da Pampulha, reforça não só a beleza da obra de Portinari e Niemeyer como sua importância histórica. “A riqueza do artista expõe sua época”, afirma. Padre Ademir, está há um ano e 5 meses na Curial, e 38 anos na Igreja. Foi convidado em 2006 para retomar o trabalho de valorizar o local como um templo religioso.

As missas aos domingos foram restabelecidas. Casamentos e batizados voltam aos poucos. O Padre também organiza em outubro o Circuito da arte pela Fé, em honra ao santo, com celebrações, exposições, apresentações culturais e até bênçãos de animais. “É uma maneira de aliar o valor arquitetônico, cultural e turístico à espiritualidade e a fé do templo”,completa. Segundo ele, os visitantes se misturam entre fiéis e turistas. Alguns param para uma prece, outros sequer percebem que ali é um templo religioso.

Se a Igreja de São Francisco de Assis é modelo do Barroco Mineiro, a Igreja da Pampulha é obra referência nacional ao Modernismo.

Patrimônio para se cuidar

A Igreja já passou por várias restaurações. A primeira foi devido ao seu abandono inicial de 15 anos. “Tudo o que é abandonado degrada. Antônio Cícero diz em um poema que guardar uma coisa é usá-la. Concordo, é preciso o uso para criar a memória”, explica a professora Mônica.

Nesse período, o jornalista Ponce de Leon assumiu a causa. “Eu roubei um Portinari”, confessou. Em 1961, Ponce entrou na igrejinha da Pampulha, em plena luz do dia, e levou consigo um dos quadros de Portinari. Não havia vidros, mas lonas de plástico, e nenhuma fiscalização. Ao fim do episódio, ele não foi preso ou demitido. Ponce de Leon ganhou a causa e um aumento salarial. O jovem repórter pretendia apenas denunciar o descaso com o Complexo Arquitetônico da Pampulha, que sofria com o abandono.

A última restauração ocorreu em 2005, pela Fundação Roberto Marinho. Na época,surgiu a ideia de transformá-la em um museu. O que não aconteceu. Mônica reflete sobre esta questão: “O valor do edifício está muito também naquilo para o qual ele foi destinado. Nem sempre uma requalificação de função resulta em algo bom. O uso religioso reduziu-se a uma única celebração dominical. Com isso, muitos turistas que a visitam em outros dias, sentem-se desconfortáveis, sem saber como se comportar. Sem saber se o local funciona ou não como igreja.”

Hoje, obras como as do complexo da Pampulha estão listadas num inventário organizado pelo Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte. O projeto, já avançado, promove o conhecimento e análise dos bens em diversas igrejas, nos 28 municípios que abrangem o território da arquidiocese. De acordo com a coordenadora Mônica Fonseca, 70% dos bens tombados do patrimônio brasileiro são religiosos.

Detalhe do altar na concepção da mais pura arte modernista.

Tradição e ruptura

O resultado comparativo é simples: os tempos mudam e com ele a forma de ver e interpretar as artes e até a religião. Carlos Drummond, em texto para a Revista 1, que criou, em 1925, junto a outros escritores,diz:

“O próprio da tradição é renovar-se a cada época e não permanecer unificada e catalogada. Romper com preconceitos do passado não é o mesmo que repudia-lo. Uma lamentável confusão faz com que julguemos toda novidade mal e toda velharia saudável.”

Em 1766, contratavam-se os artistas mais prestigiados: Aleijadinho e Mestre Ataíde. Em 1942, o mesmo ocorreu com Niemeyer e Portinari. Ambos utilizavam-se de recursos arquitetônicos incomuns. Além disso, se a Igreja de São Francisco de Assis é modelo do Barroco Mineiro, a Igreja da Pampulha é obra referência nacional ao Modernismo. E mais: se o movimento antropofágico alimentava-se de referências com objetivos de recriá-las, o barroco também deglutiu seus antecedentes europeus e criou nosso renomado Barroco Mineiro.

A título de comparação, os dois templos datam com liberdade e originalidade seu período específico. Além do fato de que as edificações estão acostumadas a receber milhares de turistas, de todo o mundo, que admiram a arte edificada, independentemente da sua religião.

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