Mário Zavagli, mineiro de Guaxupé, artista versátil que busca a construção e a desconstrução das paisagens naturais e urbanas. Observador atento, meticuloso, ele representa com perfeição a natureza e protesta contra a tragédia da devastação dos patrimônios natural e histórico.
Reportagem: Pâmilla Vilas Boas
Fotos: Reproduções das aquarelas
“Importamos pouco, os pintores. Somos apenas instrumentos, ‘cavalos’ dessa entidade, a Pintura, que escreve sua própria história brilhantemente há séculos.” Mário Zavagli não se reconhece como artista, mas sim como um instrumento de materialização do que para ele seja uma entidade: a pintura. Ainda que ele tenha como projeto a meta de não ter projeto e de trafegar na aleatoriedade de quem escolhe o tema de suas obras pelo dicionário, na verdade, seus trabalhos imprimem o cuidado de um observador atento, meticuloso, que representa com perfeição a natureza de suas idéias e de seus projetos. “Eu estava pensando em fazer um dicionário apenas de substantivos. Pegar a palavra e ir embora. Dessa forma, não importaria qual técnica vou utilizar. Eu só preciso de um dicionário e de fazer o que me der na telha”, brinca Mário.
Mário Zavagli tem um currículo extenso. Já realizou cerca de 30 exposições individuais e participou de mais de 200 coletivas, no Brasil e exterior, conquistou vários prêmios e o reconhecimento internacional por suas aquarelas. Nas pinturas em grandes formatos, busca a investigação dos processos formais e pictóricos.
Processo criativo
A destruição do patrimônio histórico de Diamantina fez com que o artista trabalhasse com a noção da morte; a descaracterização da arquitetura de Belo Horizonte fez com que ele traduzisse a fotografia para a aquarela. Nesse processo criativo, Mário busca diferentes estéticas e suportes. Dependendo de seu projeto, ele pode ser um aquarelista, desenhista, fotógrafo ou pintor. Dependendo das sensações e de suas observações, ele pode pintar diretamente na madeira, ou usar metal, pode desenhar sobre o teto, ser abstrato, figurativo ou tudo isso ao mesmo tempo. Assim, ele prova que um mesmo suporte pode carregar uma série de diferentes linguagens, que, por sua vez, provocam diferentes sensações.
Para falar do seu encantamento pelo patrimônio histórico e pelas paisagens urbanas, Mário recorre a uma Belo Horizonte da década de 1980. A famosa série sobre a cidade nasceu sem a pretensão de ser composta por pinturas ou desenhos. Enquanto Mário fotografava a cidade pelo simples prazer de fotografar, foi conhecendo uma terra de imenso abandono comparada, por ele, aos EUA após a crise de 1929. Durante os três anos fotografando a cidade, ele se encantou pela expressividade de locais marcados pela arquitetura não oficial do inicio do século feita pelos imigrantes. Se deparou também com a solidão urbana e com o abandono desse rico patrimônio.
Após quatro anos de fotografia, quando o artista resolveu voltar para os mesmos lugares com o intuito de realizar uma pintura, esses locais não mais existiam. “Mais da metade do que eu tinha fotografado não existia mais. Uma barbaridade. Fiz uma exposição grande no Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. As imagens levavam a uma reflexão sobre as cidades, a descaracterização e o passado histórico sendo jogado no lixo”, comenta. A partir desse trabalho, Zavagli foi convidado a fazer parte do primeiro conselho de patrimônio de Belo Horizonte e foi um dos responsáveis por fazer o tombamento da Serra do Curral.
Revelação e acobertamento
Em 2008, foi desafiado a tentar captar em imagens a essência da cidade histórica de Diamantina. O resultado foi um retorno ao barroco e uma aproximação com o tema da morte. “Passei um mês em Diamantina, e vejo a falta de preocupação com o passado histórico, por isso as obras falam de morte o tempo todo. Fui para fazer uma coisa e me deparei com outra”, explica Mário. Essa experiência se transformou na exposição “Pinturas de Teto”, uma busca pela expressividade local através dos prédios públicos e dos antigos monumentos religiosos.
A série sobre Diamantina de Zavagli é uma desconstrução das camadas, a destruição da superfície em busca de uma história enterrada, de uma gênese que se encontra próxima ao vazio que transita entre a verdade e a linguagem. Dessa forma, a “Morte Sorridente” é uma série que traz a alegria e a tristeza de se conhecer uma Diamantina que está abaixo da pintura atual e a vontade de retirar a pintura visível, de raspar até encontrar a tinta original. A relação de Zavagli com Diamantina não é nova. O artista já pintou aquarelas e também coordenou a área de artes plásticas do Festival de Inverno da UFMG na cidade histórica. A experiência atual foi mais profunda. Diante do desafio, ele observou a força do período barroco mesmo diante da leveza da “cidade meio baiana”.
“A série de pinturas sobre a morte me veio sem que eu me apercebesse do tema”, completa Zavagli, que se voltou para Diamantina na última década, quando resolveu retomar a pintura após passar muitos anos desenhando. “A ideia inicial era fundir imagens em grandes formatos, usando as duas séries com as quais trabalhei nos anos 80: uma sobre a descaracterização da cidade de BH e outra sobre tortura, censura e exercícios de poder, alusivas à ditadura. O resultado foram os símbolos da morte que se insinuaram sem o meu desejo. O pior é que tudo emergia sem controle. Catarticamente”, explica.
Verdade submersa
A cidade de Diamantina sofreu uma reforma em 2000, quando recebeu o título de patrimônio cultural da humanidade. Para o autor, a cidade foi pintada nos moldes de Ouro Preto, uma cidade-estado que foi a capital da província: linda, porém pesada e oficial. “Diamantina sempre me pareceu uma cidade solar, africana, colorida demais. Porém, as cores-padrão que eles escolheram para a pintura e a reforma são diferentes daquela Diamantina roxa e amarela, verde e rosa, mais baiana que Ouro Preto”, ressalta.
E foi daí que surgiu a necessidade de cavar por uma história autêntica, construída muito mais além das instâncias legitimadoras e respeitando o ritmo e a respiração da cidade. O artista relata que no teatrinho de Ouro Preto, há pouco tempo, descobriram pinturas do século XVIII que estavam por baixo de camadas e camadas de pintura. O mesmo ele encontrou em Diamantina, estudando as pinturas de teto. Em uma casa que estava sendo reformada, ele percebeu que o proprietário jogou tinta por cima das pinturas antigas. “Tecnicamente, eu procuro fazer isso o tempo todo com minha série sobre Diamantina, tento resgatar imagens que estavam embaixo de camadas e camadas de pintura”, comenta.
Essa verdade submersa e o senso de destruição fizeram com que o autor usasse o tema da morte e referências do barroco sem perder a leveza própria das cores de Diamantina. “Algumas igrejas da cidade, como a de São Francisco, estão num estado lamentável. Isso me choca e me provoca a idéia da morte, das coisas escoando para o nada”.
Assim, a série de Zavagli é uma tentativa de recuperar a memória por meio das cores antigas que estão por baixo da cidade reformada. A partir daí, as cores vão se transformando em um caminho para a morte, assim como a cidade foi se transformando pela destruição. “Essa é uma pintura para os mortos que nos legaram a cidade. O que me atinge mais do que a arquitetura é a questão do tempo. A Diamantina que apreendo não é a mesma por onde circulo hoje, é uma Diamantina que existia muito antes de mim e que me permite perceber o que já existiu e o que a cidade já foi. É desse tempo que eu me sinto quase fazendo parte, foi ele que construiu e constrói essa cidade e de alguma forma foi com ele que estabeleci esse diálogo”, explica o artista.
Naturalismo estético
“Idilicamente, minha arte nasce pelo amor pelos lugares”. Mário Zavagli é um viajante que tem um olhar atento para as paisagens, sejam elas urbanas ou da natureza. “Eu conheço as paisagens de andar por aí, as diferenças, as formações e as questões climáticas. Quando você começa a estar presente nesses lugares, você se assusta ao ver a beleza ser totalmente destruída”, comenta.
Destruição essa que não deixa de incomodar o artista que, por mais que não tenha a intenção de construir um trabalho de denúncia, não consegue ficar inerte à destruição do nosso patrimônio cultural, natural e arquitetônico: “Estão tirando minério em frente a cidade de Catas Altas. Crateras nas montanhas que fazem parte da identidade do mineiro”.
Nascido em Guaxupé, na serra da Mantiqueira, Mário sempre esteve rodeado pela exuberante Mata Atlântica. A partir do momento em que se mudou para Belo Horizonte e se deparou com uma paisagem totalmente diferente, isso causou nele um estranhamento quase estético. “Quando eu vim para Belo Horizonte e me deparei com outra paisagem, isso me causou estranheza. A Serra do Espinhaço tem a coisa bruta da pedra e a vegetação rústica do Cerrado que é tão diferente de onde nasci.” Foi nessa época, fim dos anos 70, que Zavagli teve contato com a obra de Thomas Ender, que produziu cerca de 800 imagens sobre o Brasil no Século XIX. “Ele retratou a região que nasci. Quando eu vi, eu reconheci uma representação da minha cidade e me interessei muito sobre esse aspecto.”
Fotógrafos de uma época
A partir daí, Mário começou a se interessar pela arte dos naturalistas que vieram para o Brasil no século XIX, com vistas a retratar a paisagem e a busca pelo Éden perdido. Para ele, no Brasil, até a vinda de Dom João VI, desenvolveu-se uma arte impressionante, sob uma linguagem que misturava arquitetura e escultura. Nessa época, não havia separação entre arte popular e erudita: “A arte tinha uma função, a igreja tinha uma concepção cenográfica, pictórica, arquitetônica, escultórica e que tinha uma vida cotidiana que preenchia e dialogava com as populações o tempo todo.” A partir da chegava de Dom João VI, grande parte dessa riqueza foi destruída. “O século XIX foi um momento muito duro para as artes. Uma arte triunfal que, a partir desse século, foi substituída por modelos europeus. Isso só mudou com a Anita Malfatti e a semana de 22”, completa.
Zavagli começou a resgatar a história desses artistas que, como fotógrafos da época, fizeram o registro do “paraíso” brasileiro marcado por uma fauna e flora exuberantes. “É impressionante essa saga e esses trabalhos que são verdadeiros em sua maioria. Eu não estou falando só de uma questão etnográfica e de registros, e sim da qualidade da técnica e liberdade artística”, explica.
A última série de aquarelas realizadas por Zavagli é uma homenagem e um diálogo com os naturalistas do século XIX. Depois do estudo e domínio da técnica utilizada na época, Zavagli construiu uma relação com as obras dos naturalistas que, para ele, ficaram suspensas no tempo. A sua série nasce de uma necessidade de diálogo com esses artistas. Uma carta do futuro para o passado. “A paisagem estava lá e hoje está completamente diferente. Essa sensação me faz ter um contato direto com a destruição”, compara