Fazendas mineiras
Memorável
acervo conservado
Além de guardar o mais importante patrimônio histórico do Brasil, inclusive os conjuntos reconhecidos como Patrimônio da Humanidade, Minas Gerais conserva um rico acervo histórico e arquitetônico identificado nas antigas fazendas. Trata-se de um precioso conjunto (pouco estudado por pesquisadores e também pouco conhecido pelas pessoas) que preserva a memória da vida rural desde a descoberta do ouro (no século XVII, com a consequente interiorização do Brasil) até o início da República, já na virada para o século XX.
Reportagem Denise Menezes
Fotos Cezar Felix/André Sena
Estado que concentra o maior número de bens no Brasil reconhecidos como Patrimônio Mundial pela Unesco (o Santuário do Senhor Bom Jesus do Matosinhos, em Congonhas, o conjunto histórico de Ouro Preto, o centro histórico de Diamantina e o conjunto moderno da Pampulha em Belo Horizonte), além de abrigar milhares de edificações, obras de arte e documentos tombados, em nível federal, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Minas Gerais guarda um precioso acervo histórico e arquitetônico ainda pouco estudado pelos especialistas e quase desconhecido de grande parte dos próprios mineiros. São fazendas antigas que preservam a memória da vida rural no estado, desde a interiorização da ocupação do território brasileiro, iniciada no final do século XVII, com a descoberta do ouro, até a virada para o século XX, já na República.
Preservadas pelos proprietários
São ruínas, sedes ou conjuntos totalmente preservados, na maioria dos casos pela iniciativa dos proprietários, que permanecem ativos na produção agropecuária. Esses locais foram transformados em hotéis ou outros equipamentos turísticos e ainda estão sem nenhuma medida de proteção pelos órgãos de patrimônio. Hoje, apenas a Fazenda Boa Esperança, construção do século XVIII, situada em Belo Vale, na Região Central de Minas, tem tombamentos estadual, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), e federal, pelo Iphan. De propriedade do governo do estado, foi recentemente restaurada, com investimentos de R$ 4 milhões, e aberta à visitação pública.
Outras doze fazendas também são protegidas pelo estado e mais seis foram tombadas em nível federal. Como o patrimônio dessas fazendas é ainda pouco pesquisado, não há estatísticas consolidadas sobre o número de edificações rurais históricas que se mantêm erguidas no estado. Porém, pesquisa realizada pelo arquiteto Cícero Ferraz Cruz, apenas no Sul de Minas, durante dez anos, que resultou no lançamento do livro Fazendas do Sul de Minas Gerais — Arquitetura rural dos séculos XVIII e XIX, em 2010, destacou o valor histórico e arquitetônico de cem fazendas preservadas na região da antiga Comarca do Rio das Mortes e que, à época do lançamento da obra, se mantinham ativas economicamente.
Outros raros pesquisadores que se debruçaram sobre o tema são o arquiteto e historiador Sylvio Carvalho Menezes, já falecido, e o arquiteto e professor emérito da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Ivo Porto Menezes. Eles estudaram as fazendas do século XVIII da região mineradora cujas obras são a principal fonte bibliográfica sobre a arquitetura rural mineira. Já a pesquisadora Helena Teixeira Martins desenvolveu trabalhos sobre as fazendas antigas do Campo das Vertentes.
O surgimento das fazendas
Registros históricos indicam que as primeiras fazendas instaladas em Minas Gerais datam do início do século XVIII, após a descoberta do ouro e o estabelecimento das minas. Foram fundadas justamente com o objetivo de abastecer com alimentos a verdadeira multidão que chegava à região para se dedicar à exploração das riquezas. Antes da metade daquele século, em 1742, a população das Minas Gerais já era de 174 mil pessoas. Em 1786, mais que dobrou, passando para 363 mil habitantes — 189 mil livres e forros e 174 escravizados. Com o crescimento exponencial da população, os ranchos provisórios e os alimentos vindos de São Paulo já não eram suficientes para atender à demanda dos habitantes.
Aos poucos, foram sendo instaladas fazendas no entorno das minas e ao longo dos caminhos que ligavam a região às capitanias de São Paulo, Rio de Janeiro e Baía de Todos os Santos. No princípio, a atividade predominante era a criação de gado. Mas também havia a agricultura para o consumo interno das propriedades com o cultivo de milho, algodão, cana-de-açúcar, café e algodão, além de pomares para o consumo de frutas in naturae para a produção de doces e licores, e hortas com verduras e temperos verdes.
Adaptadas à produção do café
A fertilidade maior das terras da Comarca do Rio das Mortes, no Sul de Minas, foi logo descoberta, e a ocupação da região por fazendas foi crescendo gradualmente. Na região, num primeiro momento, as propriedades abasteciam de alimentos as áreas mineradoras de comarcas em que as terras não eram muito férteis. Depois de 1808, com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, instalando-se no Rio de Janeiro, e a explosão populacional naquela cidade, as fazendas do Sul de Minas passaram a exportar a produção para a nova capital. Com o advento da cafeicultura, as propriedades escoavam os alimentos também para o Vale do Paraíba.
Na Comarca do Rio das Mortes, as fazendas se caracterizavam por grandes extensões de terras, de propriedade de portugueses e seus descendentes, com mão de obra escrava. Em princípio, como no restante da capitania, a atividade predominante era a criação de gado. Porém, ao se estabelecerem na terra, os proprietários também cultivavam uma gama variada de produtos: cana-de-açúcar, milho, café, arroz, feijão, fumo, além de hortaliças e frutas para o consumo da própria fazenda.
O cultivo do café na região foi iniciado simultaneamente à produção cafeeira no Vale do Paraíba, já no início do século XIX. A produção era voltada não só para o consumo interno das fazendas, mas também para o comércio dentro da então Província de Minas Gerais. Em meados do século XIX, é iniciada a segunda fase da produção cafeeira do Sul de Minas, em larga escala e voltada para a exportação. Na época, muitas fazendas foram adaptadas à produção do café e muitas outras propriedades foram construídas. Na obra sobre as fazendas antigas do Sul de Minas, Cícero Ferraz Cruz afirma que o século XIX foi o período em que mais fazendas foram instaladas no sul mineiro. A região chegou a totalizar mil propriedades rurais ativas.
Arquitetura
A arquitetura das fazendas antigas mineiras não segue um padrão único. O estilo, a forma, os materiais e o mobiliário usados variam de acordo com características como a região, a cultura, as atividades desenvolvidas e o período em que foram construídas. Já a escolha do local para a implantação da propriedade seguia critérios como a existência da oferta de terras na região, a possibilidade de concessão de sesmarias, a presença de caminhos para a facilidade de acesso e escoamento da produção, a ausência de conflitos, além da presença de água, da fertilidade da terra, da topografia do terreno e da insolação.
Nas fazendas do Sul de Minas, além de garantir a sobrevivência de proprietários e suas famílias, de escravizados, mais tarde, de trabalhadores remunerados, dos animais e de assegurar a irrigação dos cultivos, a água era essencial como força motriz de engenhos, monjolos, moinhos, serrarias e para mover máquinas de beneficiar café.
Em todas as fazendas mineiras, foi usada a mesma técnica construtiva, a estrutura autônoma de madeira. Porém, com o passar dos anos, houve um apuro técnico. E as casas do século XIX apresentam estrutura um pouco diferente das antepassadas do século XVIII. Nas fazendas do século XVIII, o esteio vai até o chão, onde é enterrado. No século XIX, essa peça vai até o baldrame, mantendo-se afastada da umidade do solo. No Sul de Minas prevaleceram as propriedades com a segunda técnica construtiva.
Tipo geral da arquitetura
Sylvio de Vasconcellos descreveu um tipo geral da arquitetura das fazendas das áreas mineradoras como construções erguidas sobre esteio de madeira, pelo menos na parte frontal, com a área posterior ao nível do terreno, solução permitida pelos aclives naturais que não eram corrigidos. Nas sedes, as varandas ocupam quase toda a fachada, muitas vezes, com um cômodo, de um lado, para abrigar uma capela ou quarto de hóspedes. Para os fundos, numa formação em ‘L’, são instaladas as áreas de serviços, como a ampla cozinha, com capacidade de servir as refeições aos escravizados e até aos proprietários.
O pesquisador destaca que as casas de fazendas antigas mineiras são “amplas em todos os sentidos, esparramadas nos terrenos, com grandes peças, largamente ventiladas e iluminadas, em quartos, salas ou varandas, as escadas de acesso a essas dependências, vestíbulo da construção, nave da capela, cômodo de receber e de estar”. A distribuição dos cômodos é feita em torno de uma sala central, às vezes, duplicada, com corredores para facilitar o trânsito autônomo em determinados ambientes.
A parte baixa dessas construções, ainda segundo Sylvio Vasconcellos, não é fechada por paredes. Em alguns casos, são usados balaústres de seção quadrada, instalados “losangularmente”, em gradeado, compondo depósitos de gêneros alimentícios, pocilgas e currais de bezerros. Em frente à porta de saída da cozinha, é instalada a bica, com água trazida de longe por meio de regos, em um sistema que se constituiu como primeira utilização de água corrente em moradias.
Em construções à parte da sede, ficam as comuas, cubículos de madeira erguidos também sobre esteios, por cima de regos d’água ou pocilgas. Algumas das fazendas da área mineradora têm apêndices como engenhos de cana, movidos à água ou por animais, paióis, senzalas, casas de purgar, local onde era refinado e finalizado o processo de beneficiamento do açúcar, engenho de óleo e com outras finalidades ligadas à atividade da propriedade. O gado era colocado em terreiro cercado, circundado de construções secundárias, cavalariças e casas de agregados. As propriedades contavam com praças centrais que, muitas vezes, com o desenvolvimento local, transformaram-se em núcleos centrais de povoados.
Variações nas edificações das fazendas
Cabe lembrar que a descrição de Sylvio de Vasconcellos corresponde à tipologia mais comum nas fazendas das áreas mineradoras, mas há variações em muitas edificações. Na região, por exemplo, é possível encontrar três tipos de varanda nas sedes: a entalada, a fronteira em toda a fachada e a posterior. Tanto a varanda entalada quanto a fronteira corrida, servida por escada lateral, estão presentes nas Minas setecentistas e em Portugal, tanto na arquitetura popular quanto na erudita.
No Sul de Minas, a arquitetura das fazendas antigas já apresenta algumas alterações daquelas descritas por Sylvio de Vasconcellos para as propriedades das áreas mineradoras. Em seu livro, Cícero Ferraz Cruz afirma que a estrutura autônoma de madeira das fazendas assenta-se diretamente sobre muros ou alicerces de pedras, que fazem o ajuste aos aclives naturais do terreno. “Já não há varandas, e as capelas e quartos de hóspedes estão no interior da edificação. Formato em ‘L’, como nas outras fazendas de Minas, porém, ao contrário dessas, as fazendas do Sul de Minas não apresentam “puxados” para ambientes como a cozinha, que permanecem amplas, mas não se encontram esparramadas pelo terreno. Os ambientes diversos fazem parte da mesma edificação.”, descreveu o arquiteto.
Casas altivas
De acordo com Cícero Ferraz Cruz, as casas de fazenda do Sul de Minas tornam-se, no século XIX, mais altivas. Há sempre essas duas salas, cada qual com seus cômodos orbitais. A parte baixa da construção, ou seja, o porão, é fechada por paredes de pedra, como alicerces, de pau a pique, como vedo. Algumas aberturas se fazem nessas paredes e, nesse caso, são gradeadas, como nas fazendas da área mineradora.
No que diz respeito ao conjunto, não há grandes diferenças entre as propriedades do Sul e as da área mineradora: a água permanece uma constante e outras construções complementares continuam formando terreiros, pátios e currais. A casa da fazenda mineira é parte de um conjunto de edifícios dispostos equilibradamente entre si, segundo critérios funcionais e simbólicos. Nas cotas mais elevadas do conjunto, está sempre a moradia principal. No plano médio, ficam as instalações produtivas e as antigas senzalas e, ao fundo, a vargem. “Era imprescindível que a casa fosse o centro e que dela se tivesse o controle de tudo — não do ponto de vista do domínio do território, mas do ponto de vista do domínio do núcleo. Mesmo fazendo parte de um conjunto maior de construções, a casa da fazenda sul-mineira é sempre uma construção independente, diferentemente de alguns engenhos de açúcar do Nordeste e do litoral paulista, em que o edifício da moradia é o mesmo da fábrica ou do engenho”, ressalta, no livro, Cícero Ferraz Cruz.
Na obra, o arquiteto destaca ainda que as fazendas dos Campos das Vertentes, estudadas pela pesquisadora Helena Teixeira Martins, diferem-se das propriedades do Sul do estado. Têm aspecto irregular e características mais próximas das apresentadas por aquelas instaladas na área mineradora, descritas por Sylvio Vasconcellos. Na Zona da Mata, as fazendas, ligadas à expansão cafeeira em torno do Caminho Novo, têm tipologias variadas e, também, diferentes das do Sul. Algumas têm similaridade com fazendas do Vale do Paraíba fluminense, outras, com as da área mineradora. As propriedades do Oeste do estado, ainda menos estudadas, parecem ter tipologia próxima às dos Campos das Vertentes, ora parecidas com as das áreas mineradoras ora similares às do Vale do Paraíba.
Ornamentação
Nas fazendas mineiras, geralmente austeras, o maior cuidado de ornamentação se vê nos espaços de devoção, seja nos oratórios presentes em salas da casa seja nas capelas, instaladas ao lado de varandas ou em construções anexas à sede. O requinte é variável, e, no conjunto de fazendas antigas do estado, encontram-se desde capelas com altar e retábulo apenas pintado, como na Fazenda Santo Antônio, em Barra Longa, até as mais sofisticadas, com altar e retábulo entalhados, pintura no forro e nas laterais, como na Fazenda Minhocas, de Lagoa Santa. Há ainda obras de artistas reconhecidos, como Aleijadinho, na capela na Fazenda da Jaguara, em Matosinhos, Vieira Servas, na Fazenda Boa Esperança, em Belo Vale, e pinturas de Ataíde, também na capela da Fazenda Boa Esperança e em quadros originalmente feitos para a Fazenda de Cima, em São Domingos do Prata.
Uma pitada de sofisticação também é percebida na construção de muitas sedes de fazendas mineiras. Há um esmero na elaboração dos componentes, como a perfeição dos encaixes de madeiras, e, principalmente, nos acabamentos. São conversadeiras, como na Fazenda Contramestre, em Barbacena, guarda-corpos de madeira recortada, como na Fazenda Papagaio do Meio, em Santana dos Montes, vedações almofadadas, como na Fazenda das Quintas, em Bom Jesus do Amparo, forros alteados em gamela de esteira, como na Fazenda Rio São João, ou de tabuado liso, para receber pinturas, como na Fazenda da Posse, também em Santana dos Montes.
Lista de fazendas mineiras com tombamento estadual:
- Fazenda da Boa Esperança – Belo Vale
- Fazenda Boa Vista dos Martins – Brumadinho
- Fazenda dos Macacos – Conselheiro Lafaiete e Cristiano Otoni
- Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Fazenda da Posse – Santana dos Montes
- Fazenda das Melancias – Água Comprida
- Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Fazenda de Santo Antônio – Esmeraldas
- Fazenda Carreiras – Ouro Branco
- Fazenda Pé do Morro e Capela de Santana – Ouro Branco *
- Fazenda Mundo Novo – Simão Pereira
10.Fazenda Jaguara – Matozinhos
11.Fazenda Fonte Limpa – Santana dos Montes
12.Fazenda São José do Manso – Ouro Preto
13.Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Fazenda Santa Clara – Santa Rita de Jacutinga
Lista de fazendas mineiras com tombamento federal:
- Casa da Fazenda do Leitão – Belo Horizonte
- Fazenda da Borda do Campo (; incluindo sua sede, capela e sobradinho anexos, inseridos no seguinte perímetro: ” Iniciando no portão de pedra da entrada da Fazenda, segue à direita passando pela estrada à frente da capela e do sobradinho, até atingir a cerca) – Antônio Carlos
- Fazenda da Boa Esperança – Belo Vale
- Casa da Praça Santo Antônio, 94 – antiga sede da Fazenda Sete Lagoas – Sete Lagoas
- Fazenda do Pombal – remanescentes (ruínas) – Ritápolis
- Fazenda do Rio São João (casa) – Bom Jesus do Amparo
- Sede da Fazenda do Registro Velho (moradia do inconfidente Padre Manoel Rodrigues da Costa (Barbacena)