Metáfora da busca

Talvez por ser de Minas Gerais, este Estado com estradas, ferrovias, montanhas e histórias suficientemente tão prolíferas e paradoxais quanto um outro país, Fernando Lutterbach nunca cortou raízes. Mas, curiosamente nunca parou de viajar, seja no sentido literal ou na construção da fotografia que sonha produzir.

A exposição fotográfica “De Passagem” faz uma reflexão sobre constante transitoriedade da vida. As estações de trem de Mariana, Ouro Preto e Belo Horizonte foram utilizadas no ensaio como uma metáfora da busca e da transformação. Afinal, a vida é o caminho e não o destino. “Estamos sempre, em fase de transição. Estamos neste momento, assim como estivemos no momento anterior e estaremos no momento seguinte”, diz o fotógrafo.

Depois do ensaio pronto foram convidados 12 autores (entre artistas plásticos, psicanalistas, jornalistas e escritores) para dialogarem com cada foto. Cada poema, conto ou crônica é o resultado do efeito provocado por cada imagem escolhida especialmente para um determinado autor.

Interessado em fotografar pessoas e animais em suas relações íntimas com a natureza desde 1999, Fernando Lutterbach tem desenvolvido diversos projetos de fotografia de viagem em paralelo com seu trabalho de retratos, fotografia de casamento, família e estilo de vida. Seu trabalho comercial, que tem também um viés poético, tem sido premiado por diversas associações como a International Society of Wedding Photographers (EUA) e a Wedding Photography Select (Reino Unido). Já realizou duas exposições individuais em Belo Horizonte e diversas séries autorais, algumas ainda em desenvolvimento.

Formado em jornalismo pela PUC Minas, hoje tem mais influências do cinema, quadrinhos e artes plásticas em sua bagagem, lentamente adquirida em busca de si próprio, desde 1974.


ESTAÇÃO TEMPO

Por Carolina Godoi

Há muito tempo, impossível de contar, Sebastião guardava aquela carta amarelada no bolso da única calça de passeio que tinha. Depois de tantos anos, ainda se arrependia de não a ter respondido. Mais ainda, se arrependia de não ter ido ao encontro que Rosa marcara naquelas tortas linhas.

Por não ter ido naquela sexta-feira, na hora marcada por ela, Sebastião passou toda sua vida indo e voltando sem encontrá-la. Ele chegava pontualmente no horário marcado, todos os dias da semana, menos um. Sentava no banco da estação de trem e ficava procurando por ela, a chamando em pensamentos e imaginando a vida que poderiam ter tido juntos, se.
Todas as vezes que o vento batia em seu rosto, ele levantava os olhos para verificar, sem muita esperança, se era Rosa quem finalmente saltava do trem para dentro da sua vida. Ela não vinha, não vinha, não vinha. E o trem voava pela imobilidade do seu corpo cansado. Ele baixava os olhos e punha-se a reler a carta que não mudou sua vida.

Sebastião ficava esperando até que o lugar se aquietasse e ele tivesse a certeza de que era impossível alguém sair daquele trem naquele dia. Voltava para sua casa vazia, esquentava o jantar dormido de ontem e fazia o café de amanhã.

Foi em uma dessas manhãs cinzentas. Ele fez tudo igual, na mesmice possível que conseguia. Viu as mesmas pessoas indo aos mesmos lugares, no mesmo trem que passava sempre na mesma direção, e que ele há anos deixava partir.

Numa das infinitas vezes em que a porta se abriu naquele dia, ele então, avistou sua Rosa. Ela estava de mãos dadas com uma senhora de cabelos muito brancos, rosto marcado pelo tempo e queimado do sol, vestida de chitão. Desceram do trem. Só quando reconheceu seu antigo anel em forma de promessa nos dedos daquela velhinha, entendeu. Olhou para suas próprias mãos enrugadas, fechou a carta amarelada e voltou para casa.

ESTAÇÃO DA CHUVA

Por Fernando Lutterbach

DESÇO AS ESCADAS NA ESTAÇÃO GAMELEIRA
CORRO CONTRA O TEMPO
PELA JANELA DO TREM VEJO A CHUVA CAIR
SERÁ QUE VAI DAR TEMPO?
VEREMOS, EM JANEIRO, VERÃO.

NA ESTAÇÃO CARLOS PRATES AINDA CHOVE.
ENQUANTO ESTOU NO TREM O TEMPO É DELE.
VIAJO, PENSO, BALANÇO, SILÊNCIO.
OLHARES SE CRUZAM E SE DESVIAM.
CRIANÇAS, VELHOS E CHUVA.

NA LAGOINHA ENTRAM E SAEM MALAS.
TODOS CORREM CONTRA OS PONTEIROS.
O TREM É O DONO DO TEMPO.
OLHO NO RELÓGIO, NÃO VAI DAR TEMPO!
O TREM ARRANCA, É NA PRÓXIMA.

FICO DIVAGANDO E SORRINDO SOZINHO.
ESTAÇÃO CENTRAL, AGORA, O TEMPO É MEU!
DESÇO CORRENDO, PEGO O CORREDOR, OUTROS CORREDORES SE ESBARRAM.
JÁ NA PRAÇA A CHUVA PAROU.
APERTO O PASSO E PASSO NA POÇA, VAI DAR TEMPO!

O TREM

Por Ana Lúcia Holck

TREM
REFLEXO DE UMA SAÍDA
TRÂNSITO
DE UM TEMPO A OUTRO
TRANSITORIEDADE
DO PERDIDO AO NUNCA ANTES VIVIDO
TRANSPORTE
DO PERECER AO FLORESCER
TRILHO UNO PRESO AO CHÃO
SOB O IMPREVISTO CÉU DE MÚLTIPLAS ESTAÇÕES
TEMPESTADE, SOL, FOLHAS SECAS
VARRIDAS DE UM VENTO VELOZ.
SALTAMOS NA ÚLTIMA ESTAÇÃO:
CAÍDOS, DORMENTES, EXAUSTOS.
TRADUZIDOS NUM POEMA INFINITO
SEM TRILHO, NEM ESTRIBILHO.

A VIDA É SEGUIR

Por Luis Giffoni

Uma foto, uma estação, um homem.
Sai do Vilarinho, vai para onde?
O olhar indaga, busca a resposta, perde-se na esperança.
As mudanças assustam, desorientam, mas são o futuro.
Mergulho no desconhecido.
Abraço da incerteza.
Loteria do amanhã.
Pode ser diferente?
A vida é ensaio e estréia ao mesmo tempo.
Gravação ao vivo, sem rebobinagem, sem videoteipe.
Só a memória guarda.
Uma fotografia.
O homem do Vilarinho confunde-se
com o caminho da própria humanidade.
Trânsito permanente, viagem sem duração conhecida,
todos os rumos, estação final invisível.

MINHA FORNALHA

Por Guiomar de Grammont

TODOS OS DIAS, O MESMO GESTO LONGO, EM ELIPSE.
O FOLE A ALIMENTAR O PULMÃO DA LOCOMOTIVA.
HÁ MUITO PERDERA O SENTIDO DO TATO,
MESMO NA PROTEÇÃO DAS LUVAS.
AS MÃOS UMA CAPA IMPERMEÁVEL,
CAPAZ DE DAR, MAS NÃO DE RECEBER CARÍCIAS.

TODOS OS DIAS O MESMO GESTO LONGO, GENEROSO.
OS BRAÇOS NA CONSTÂNCIA DO PÊNDULO.
MÚSCULOS EM MOVIMENTO PRECISO.
A BOCA INSACIÁVEL DO TREM, ESCANCARADA,
A REVELAR O VENTRE INCANDESCENTE.
O CARVÃO: O MONSTRO SE ALIMENTA DA MORTE.
CRONOS ENGOLINDO OS FILHOS.
O TEMPO EM CADÊNCIA IRREVERSÍVEL.
MORTE TRANSUBSTANCIADA EM VIDA.
USINA DO MUNDO.

TODOS DIAS O MESMO GESTO BRUTO.
MEU CORAÇÃO É UMA FORNALHA.
MEU CORPO, ESSAS ENGRENAGENS,
CORRENDO SOBRE OS TRILHOS.
TRILHEI O ESQUECIMENTO.
SOU O QUE VÊ E O QUE PASSA,
PAISAGEM TRANSITÓRIA.
SOU O HOMEM QUE LEVANTA ESSA PÁ.
O CANSAÇO DOS QUE SABEM
NÃO HÁ DIFERENÇA
ENTRE A PARTIDA E A CHEGADA.

PARA VER O TREM NOS OLHOS DO MENINO

Por Lúcia Castello Branco

Atentemos, antes, para a mochila vazia que ele carrega em suas costas. Vazia e rasgada, ele a sustenta como se ali trouxesse a sua bagagem.

Um viajante, admitamos. Um passageiro do trem que partiu, do trem que perdeu, do trem que ainda vai chegar.

Imaginemos seus olhos que olham pros trilhos, que desenham o caminho reto dos trens. Pensemos em seu anseio de viagem. Ou, talvez, em seu receio de viagem.

Por onde viajam os olhos do menino enquanto o trem não vem?

Porque suas costas, estas que se inclinam suavemente sob o peso insustentável de uma mochila vazia, são capazes de nos encher de comoção.

Antes que o trem desponte, um menino de costas sem peso atravessa a paisagem. E os trilhos sem trem nos dizem que o que passará talvez já tenha passado.

De passagem. Talvez assim pensássemos o menino, este que por acaso se sentou à beira dos trilhos, a interromper a nudez daquele caminho de trem algum. Talvez assim pensássemos, se o menino não estivesse ali tão bem plantado, com sua mochila rasgada, cheia de nenhum peso, cheia de nada.

Talvez assim pensássemos, se não houvesse nos olhos do menino um trem por vir, um trem que já se foi e o caminho justo dos trilhos que não vão dar em nada. Talvez assim pensássemos, se aquelas costas pequenas, já vergadas sob o peso de uma mochila de vento, não nos dissessem que o que passará, o que já passou, é também tudo o que nos resta, tudo o que resta para nossos olhos expectantes, à beira do caminho: um trem de reto destino, sem menino algum.

QUIXOTE

Por João Cláudio Moreira

A LANÇA HIRTA
DESAFIA O CÉU:
VAI CHOVER?
VAIS CAIR?
QUE CHOVA, QUE CAIAS,
CÁ ESTOU IMÓVEL
E SEM FIM.

PASSASSEM OS SÉCULOS
COMO UM SUSPIRO
DE FIM DE SEMANA BANAL,
SEM MAR E SEM AMOR,
COM NOITES E MANHÃS
SE ALTERNANDO
EM ECLIPSES
DE UM FOLEGO SÓ
E TALVEZ EU PERMANECESSE
COM MINHA POSE SEM CAIMBRAS,
DESAFIANDO A ETERNIDADE.

POIS NEM O ESTRUME DOS POMBOS,
OS DEUSES E SEUS TOMBOS,
CHUVA DE GRANIZO E O SOL,
OU VENDAVAIS
OU CARNAVAIS
OU PICHAÇÕES
SABOTARÃO MINHA ILUSÃO
DE ATRAVESSAR
UM CÉU CINZENTO
OU A NÉVOA
SE CONDENSANDO EM TEMPO.

MINHA VIAGEM
NÃO É DE PASSAGEM:
QUE CHOVA,
QUE CAIAS
ENTÃO

SOMBRAS PARA OLHAR

Por Michele Borges da Costa

Que o ponto de chegada seja o ponto de partida, disse, interrompendo o longo silêncio que tinha nos acometido desde que entramos naquele vagão.

Não tem sentido andar de um lado para o outro, respondeu ela.

Até então, nossos dias haviam sido rotineiros e felizes, mas a melancolia a atormentava incansavelmente.

O que você vê? Perguntei já apontando para o casal de idosos sentado à nossa frente.

Vejo sofrimento disfarçado.

E qual é a história deles?

Ela só queria ver a luz. Ele não sabia o que significava aquilo. Agora, ela o vê de outro modo. Acho que a vida já o deixara cair, e ele, desesperado, pedia-lhe apenas que não o abandonasse.

Com um leve gesto, indicou-me a porta do metrô.

Preferia que você tivesse descido.

Que lembrança levará de mim?

A maior lembrança é o que eu nunca tive.

Observei enquanto se afastava e percebi que, longe dela, eu não tinha o que fazer.

ENCONTRO  

Por Antônio Godoi

 

A ESTAÇÃO ESTAVA SÓ

MEU OLHAR PERDIDO NO SEU ENCANTO,

A OLHAR SEM RUMO O TANTO…

 

SEU OLHAR NO MEU REPOUSA

COMO SE VISSE A PAZ MERECIDA

MEU CORPO SOLITÁRIO PALPITA

A CLAMAR O SEU SEM MEDIDA…

 

MEU CORAÇÃO CHEIO DE TUA AUSÊNCIA

NO VAZIO DO MEU PEITO ESPREITA

ANGÚSTIA DE ESPERA, NO TEMPO DE MINHA SOLIDÃO…

 

TE VEJO

VOU ME FARTAR DE TI…

ME LAMBUZAR DE TI…

ME IMPREGNAR EM TI…

TIRAR O RANÇO DA SAUDADE

 

TE LEVAREI PARA CASA

TE LEVAREI COMIGO

“NÃO DOU NENHUM PEDAÇO”

QUERO-TE TODA…

 

ME SOSSEGAR NO SEU COLO

ACALMAR MEUS ANSEIOS

TE AMAR EM PAZ…

NA MIRA

Por Elisa Arreguy Maia

TREM DE PASSAGEM, DE PASSAGEIRO
TREM TÃO LIGEIRO QUE VAI PASSAR
SEM SE VER

SÓ O FOCO DETÉM O TEMPO
VAZA LENTES CAPTA, EM CHEIO,
O MENINO QUE MIRA O TETO
— UM INSETO? INCERTO DEVANEIO? —

NO ÂNGULO JÁ SE FECHANDO
NO REVERSO DO DESTINO
LOGO ALI, ALÉM, A MULHER
NO TREM DESSE MENINO

MAIOR QUE UM PÉ DE AMORA

Por Maria Lutterbach

Quando come amoras, pensa na árvore esparramada pelo quintal da primeira casa onde morou e que, hoje, só sabe lembrar em pedaços. Era um quintal pequeno para as ambições da amoreira, mas ela brotou sem nenhuma cerimônia até alcançar cada canto do terreiro. Assombrado de ver aquilo ganhar tanto tamanho sem ter mais chão pra onde crescer, Elias comeu amoras por vinte e sete dias seguidos num daqueles verões antigos, em tentativa de aliviar a árvore carregada. Desde então, tem a boca ligeiramente roxa. Quem olha sem saber da história, pensa que ele é meio adoentado, mas a cor veio do exagero de amoras engolidas por caridade.

Afastando um pouco a folhagem da amoreira e encaixando o olhar entre os buracos da cerca, nos fundos da casa, ele, menino, conseguia ver a pontinha de estrada lá na frente. Abafava dentro de si um suspiro, já na intuição de que logo ali estava a brecha pras outras terras que um dia ia alcançar. Foi grudado na cerca, acompanhando o barulho dos poucos carros que cruzavam a rodovia daquela vila na rabeira do mundo, que Elias inventou os lugares para conquistar quando fosse mais crescido em altura e coragem.

A verdade é que nunca soube ao certo se estava grande o bastante pra sair dali, fazer seu caminho e desenhar então cada próximo passo só pela sua vontade. Mas deu de ombros e foi embora mesmo assim – numa tarde de quinta-feira, colocou fim naquela murrinha de viver amarrado aos delírios silenciosos. Sem pai, mãe, ou amoras, precisou se pendurar em outros enredos e hoje já não pode duvidar que o incerto tem mais gosto e graça do que o confortável.

Entusiasta de certas donzelas macias e sempre alegre quando assunta vontades de vida com os comparsas, é fiel ao seu trajeto invisível e se desgarra fácil pra entrar de novo em rotação. Senão murcha. Entre uma estação e outra, dentro do ônibus ou a pé pelas cidades que cativa com valentia, Elias se acostumou a visitar aquela sua primeira vila em sonhos atravessados. E toda vez que come amoras, pensa na árvore esparramada pelo quintal, mas por hora trota adiante porque a cabeça ainda não sabe fazer o caminho de volta.

ABISSAIS

Por Vera Casa Nova

No abismo desses teus olhos

cristalizo meus ais.

percorro luzes e sombras.

Em cada penumbra

deixo meus delÍrios

acontecerem.

Abro e fecho portas e janelas.

Esquecer-te?

ImpossÍvel jogo:te vejo na luz dessa foto por entre labirintos.

Portas e janelas te espelham

Sou cego de ti.

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Categorias:
Ensaios

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