Litros de história
A história e a cultura do povo brasileiro, em vários cenários, têm a cachaça como a bebida símbolo do Brasil. Salinas, no norte de Minas, é reconhecida como a capital nacional da cachaça artesanal. E, para eternizar a memória da mais brasileira das bebidas, a cidade inaugurou, em Dezembro de 2012, o Museu da Cachaça de Salinas.
Reportagem Rita de Podestá
Fotos Júnia Mortimer
A produção açucareira surgiu no Brasil após início da colonização do Brasil, depois de 1530, como grande empreendimento de exploração. Os portugueses já eram familiarizados com o processo de plantio e processamento da cana realizado nas Ilhas Atlânticas. A nova colônia oferecia condições climáticas favoráveis, e por esse motivo, não tardou para que ocorresse a instalação de grandes unidades produtoras de açúcar pelas regiões litorâneas no território.
Era preciso muito trabalho para tamanho empreendimento, o que ficou a cargo da mão de obra escrava africana, que junto tornava-se outro negócio lucrativo à Coroa — por conta dos impostos cobrados sobre o tráfico negreiro. O processo de fabricação do açúcar, após a colheita, consistia no esmagamento dos caules e, posteriormente, no cozimento do caldo em enormes tachos até se transformarem em melado. Nesse processo, era também fabricado um caldo mais grosso, que de acordo com relatos, chamava-se cagaça e que fermentava com a ação do tempo e do clima, produzindo um líquido de alto teor alcoólico. Curiosos, os escravos experimentaram o líquido que parecia um melado — e gostaram.
Outra história, diz que, certa vez, os escravos misturaram um melaço velho e fermentado com outro fabricado no dia seguinte. Da mistura, acabaram fazendo com que o álcool presente no melaço velho evaporasse e formasse gotículas no teto do engenho. Durante o dia o líquido pingava em suas cabeças e iam até a direção da boca dos escravos que experimentavam a bebida apelidada, obviamente, de “pinga”.
A mais brasileira das bebidas
Histórias que geram discussões e questionamentos, afinal, são apenas histórias, que passaram de boca em boca, gerações em gerações, uma vez que não existem relatos documentados sobre tais conjunturas. Talvez como o polêmico caso do descobrimento do Brasil, nunca saberemos ao certo se foi acidente ou se foi tudo bem planejado. Para Messias S. Cavalcante, autor do livro “A verdadeira história da Cachaça”, são muitas as suposições. “Apesar de ser parte do cotidiano do brasileiro há séculos, há poucas certezas sobre as origens da cachaça e muitos que escrevem sobre o assunto são obrigados a deixar, por ausência de suporte documental, muitas lagunas.”
Pode não se saber como, e quando, a cachaça — aguardente de cana, pinga? — foi introduzida na vida do brasileiro. Porém, um fato é inquestionável: a cultura e história deste país tem em vários cenários a cachaça como seu combustível. Para saber melhor sobre há de se conhecer a trajetória da nação brasileira. O preço barato da bebida, a sua possibilidade popular, o seu consumo democrático fizeram da história da cachaça muito parecida com a do nosso povo. Antes mesmo de ser considerada uma mercadoria, é uma bela e autêntica expressão da nossa cultura.
Se no início era bebida discriminada pelos ricos que preferiam produtos genuinamente europeus, e consumida apenas pelos escravos e os pobres, hoje está no boteco da esquina, em requintados restaurantes ou em estabelecimentos que servem exclusivamente a bebida. Além de ser considerada a mais brasileira das bebidas, famosa em todo o mundo, bem junto com nosso samba e futebol.
A cachaça é brasilidade. O Produto é característico da inventividade brasileira e tem presença marcada na língua, na literatura, na música, na arte, na culinária. E até na medicina popular, a bebida é bastante usada para as macerações e infusões de raízes e ervas, ou como base para as famosas garrafadas — fórmula medicinal preparada com componentes de origem vegetal, mineral e animal, usada nas práticas de curandeiros. Já na política, esteve sempre identificada com os movimentos de emancipação e (re)afirmação da nacionalidade. Não é a toa que foi a bebida dos Inconfidentes, e dos Modernistas sendo reverenciada na Semana de 1922.
Com sua versatilidade, é companheira de boas conversas e tira-gostos, além de fonte de inspiração e remédio para diversos males. Recupera forças, ameniza tristezas e desperta o bom humor. Através de sua forte carga simbólica, e de como ela se manifesta, o povo se entende, celebra, festeja, faz oferendas, clama, canta a vida e chora os desencantos. Uma prova de sua vitalidade cultural está nas centenas de nomes pelos quais o povo a chama: Abrideira, Água benta, Birita, Branca, Caiana, Cana, Caninha, Canha, etc..
Pleonasmo mineiro
É bebida nacional, isso está confirmado, mas tem lá seus lugares certos. Como Minas Gerais, onde para um mineiro dizer a frase cachaça mineira é quase um pleonasmo. A relação de Minas Gerais com a bebida vem desde o século XVIII. Claro que outros estados produzem boas cachaças. O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, mal se tornou Patrimônio Mundial pela Unesco, e já havia elegido a sua bebida oficial, a cachaça que, em 2012, se transformou em Patrimônio Histórico Cultural do Estado. No mercado brasileiro, convivem atualmente, dois produtos que, apesar de ambos receberem o nome de cachaça e possuírem como matéria prima a cana-de-açúcar, têm processos de produção bem diferenciados — além do sabor e teores alcoólicos: a cachaça de coluna ou industrial e a cachaça de alambique.
A diferença entre a cachaça artesanal e a industrial está no processo de produção. Artesanalmente, enche-se o equipamento, destila-se, e depois o esvazia completamente. A produção é feita em pequenos volumes e suas etapa acontecem sem pressa, no ritmo da vida de interior. Já no processo industrial, o volume de produção é maior e constante — de um lado o mosto (suco) fermentado, e do outro, sai a cachaça já destilada, um processo bem mais acelerado.
O processo de produção da cachaça artesanal é uma tradição de mais de 300 anos, é trabalhosa e cheio de detalhes. Por ser feita do caldo de cana, sem a adição de produtos químicos, cada cachaça carrega características de seu produtor que garante estar fazendo uma obra de arte. Os segredos podem ser desde a escolha do tipo de cana, a época certa da colheita, o tempo de moagem, a fermentação, a forma de destilação ou os tonéis para o envelhecimento — cada produtor tem o seu toque especial.
Regulamentação e proteção
O Estado de Minas Gerais é líder na produção da cachaça de alambique, com produtos artesanais voltados para o mercado interno, em sua maioria de características familiares, dinâmica e resistente. Além disso, foi o Estado pioneiro na aprovação da legislação para a regulamentação e proteção à produção de cachaça. Por meio da Lei Estadual 13.949/2001, estabeleceu-se o processo de produção e deu outras providências. As universidades e outras instituições de Minas têm investido pesado na pesquisa da cana-de-açucar e já conseguiram colocar no mercado mais de dez variedades, com períodos de maturação diferentes, que permitem estender o tempo da safra.
Tudo tem seu tempo. Como um bom mineiro no meio de uma roda de pessoas desconhecidas, o processo começa devagar, meio desconfiado. A conversa de início tímida e recatada, vai aos poucos se agitando. É só deixar o papo maturar que o mineiro fica logo à vontade, cheio de prosa e de gosto — como uma boa cachaça artesanal, sem pressa para ser degustada e pronta para selar novas e duradouras amizades.
Salinas — capital nacional da cachaça
Porém, orgulhoso mesmo é o mineiro da cidade de Salinas, localizada no norte do Estado. Nas últimas décadas, o município tem sido reconhecido como a capital nacional da cachaça artesanal. É lá que estão os segredos, ou melhor, as cachaças mais cobiçadas do país. Salinas possui a maior concentração de marcas de cachaça artesanal do Brasil. A safra movimenta os alambiques e a cidade toda ao redor, gerando renda, empregos e recursos público. Salinas também é o único lugar do Brasil que oferece curso de nível superior relacionado à cachaça, o curso Tecnologia em Produção de Cachaça, promovido pelo Instituto Federal Norte de Minas.
Mas é importante ressaltar que o título de “bacharel da cachaça” não deve ser visto como algo pejorativo. Para Karoll Guimarães, fotógrafa, nascida e moradora da cidade, “a relação dos moradores com a cachaça não é a daquela imagem negativa e superficial que se tem do uso da bebida, que torna as pessoas viciadas e as fazem viver no ócio e na desgraça. Aliás, creio eu que essa imagem foi extinta há muito tempo, desde quando começou a surgir essa supervalorização da cachaça no mercado, gerando um alargamento nas negociações e que resultaram na sua entrada para o mercado externo, bem como na glamourização da bebida que temos visto.”
Patrimônio Cultural Imaterial
O reconhecimento atravessa fronteiras: turistas de todo o Brasil e do exterior visitam Salinas para conhecer e degustar a bebida no Festival Mundial da Cachaça, evento que é realizado todos os anos desde 2002 pela Associação de Produtores Artesanais de Cachaça de Salinas (Apacs), com o apoio da prefeitura. Salinas possui a cachaça artesanal como símbolo de sua vocação econômica e cultural. A genuína bebida brasileira ali produzida está cada vez mais cobiçada pela sua qualidade, tradição e variedade de marcas.
Na cidade também está a marca de cachaça artesanal mais tradicional do Brasil, a famosa cachaça Havana-Anísio Santiago, reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial de Salinas. Também é de lá o maior produtor do estado em volume de produção comercializada sob as marcas Boazinha, Saliboa e Seleta. Outras marcas tradicionais como BeijaFlor, Canarinha, Cubana, Erva Doce, Indaiazinha, Lua Cheia, fazem sucesso junto ao consumidor que a cada dia vem apreciando e degustando essa genuína bebida brasileira, sem saber que está bebendo doses de história.
Do alambique para o museu
E para reunir litros de história e tantos méritos, nada mais digno do que um grande museu dedicado à bebida — e nada melhor do que Salinas como o cenário perfeito para esse projeto. Em Dezembro de 2012 foi inaugurado na cidade o Museu da Cachaça de Salinas, a partir de um convênio com a Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais, a Prefeitura e a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Certamente, foi esse o melhor exemplo da importância da bebida para a região. Mais especial ainda por ser o primeiro museu da cidade, que além de contar e simplesmente expor a história da cachaça, apresenta no projeto programas pedagógicos, biblioteca, brinquedoteca, centro de produção audiovisual e sala de projeção multiusos. É a confirmação de que o precioso líquido é muito mais do que apenas um produto.
A construção está localizada onde era o antigo aeroporto da cidade em uma área de 13 mil metros quadrados na cidade. O projeto é da arquiteta Jô Vasconcellos, enquanto o Laboratório de Estudo em Museu e Educação da Faculdade de Educação da UFMG realizou o plano museológico e contou com a participação de pesquisadores da universidade para o desenvolvimento do conteúdo.
Visão antropológica
Assunto é o que não falta. Temas como a história da cachaça em Salinas, plantação, colheita e moagem da cana, sociedade do açúcar, engenhos antigos e atuais têm exposições abrigadas em oito salas. O produtor Anísio Santiago, fabricante da Havana, recebe a homenagem justa com sala própria. Histórias da família confundem-se com a da bebida e, também, com a história da cidade. Como o exposto Caminhão Chevrolet Loadmaster 1947, da família de Anísio Santiago, um dos primeiros veículos a circular em Salinas na segunda metade do século XX. O museu divide-se em nove salas – Hall de Entrada, Sala dos Canaviais, Sala das Garrafas, Sala do Engenho, Sala do Moinho, Sala do Aroma, Sala Multiuso, Sala de Terra Batida, Sala de Depoimentos.
E não é porque o lugar é um museu que o novo não tem espaço: no local existem salas de reunião para produtores de cachaça e um espaço na loja para a venda de produtos e o que não falta por ali é inspiração para os atuais produtores. A proposta principal do Museu é apresentar um eixo socioeconômico que trata da produção, circulação e consumo da bebida a partir de uma visão antropológica e, paralelamente, explorar o sociocultural que se desenvolve a partir dos grupos sociais e do imaginário coletivo envolvidos na temática da cachaça.
E o interesse não é só para adultos e consumidores da bebida, pois crianças são muito bem-vindas. Estudantes de escolas locais têm organizado visitas ao museu, em ações que aproximam a atração do público escolar. O deslumbramento é garantido, seja por meio do encantamento de ver maquinários antigos — moedores e engenhos, ou pela interação digital que o museu oferece, com jogos e vídeos. E é claro que não faltam alertas sobre o consumo excessivo de álcool.
Um grande atrativo para o público adulto é a possibilidade de degustar as melhores aguardentes do país. Depois, recomenda-se dispensar o carro e caminhar pela cidade. A dica é o Mercado Municipal de Salinas, onde aos sábados todos se encontram: produtores, moradores, crianças e os personagens que dão vida à cidade. Além, é claro, de muitas especiarias, queijos e artesanato.
Memória
O Museu da Cachaça foi projetado para ser um diferencial no Norte de Minas e no Brasil. No que diz respeito à geração de emprego e renda, funciona como um instrumento não apenas cultural, mas um precioso bem para a economia de Minas e de Salinas. Que a cachaça é um produto brasileiro, os mineiros sabem, mas não se pode negar que a cachaça mineira é um orgulho nada humilde, e mesmo quem não gosta da bebida, defende-a com apreço.
Karoll, que foi chamada pelo grupo de imprensa da Prefeitura de Salinas para fazer fotos do Museu um dia antes da inauguração, diz que a emoção foi indescritível, não só para ela, mas para todos salinenses. A fotógrafa conta que mesmo não sendo consumidora da bebida possui com a cachaça uma relação muito próxima, principalmente pela sua avó, Dona Bezinha, proprietária de um movimentado bar da cidade: “Cresci no bar da minha avó, ouvindo causos de bêbados e sobre bêbados. Minha avó parece até se perfumar de cachaça, do tanto que os bêbados a adoram. Há muitas histórias, causos, papos, que se for pra citar daria um livro. A cachaça pra mim é sinônimo de história, cultura, raízes, hereditariedade, beleza e arte, pois através dela encontro o cenário perfeito para o relato de muitas das minhas fotografias e memórias.”
Cachaça em prosa
É mesmo de memórias que se faz uma boa cachaça. E os causos e contos são muito bem relatados em músicas e poemas. Cantada em prosa e verso por escritores, músicos e poetas, a cachaça criou raízes no imaginário popular. No sertão ou na cidade, nos tempos de colônia ou na modernidade, no interior ou litoral, na periferia ou luxuosos condomínios, lá está ela, pura ou com gelo e limão, selando amizades e confraternizações, acalmando os nervos ou abrindo o apetite. “A cachaça amiga, não há quem me diga que não tem valor/ Por ela ser tão boa, vive assim a toa sem saber se impor /Ela dá coragem, ela dá vantagem, dá inspiração /E não admite falta de apetite numa refeição”.
Até mesmo o poetinha Vinícius de Moraes, talvez no momento que não bebia uísque, flertava com a bebida e degustava toda sua brasilidade: “Há dias que eu não sei o que me passa/Eu abro o meu Neruda e apago o sol/Misturo poesia com cachaça/E acabo discutindo futebol”.
Muito mais que bebida, uma palavra substantivo, adjetivo, verbo e nome próprio — multiforme. Serve até para descrever vícios — bons vícios, como bem coloca o mineiro Drummond: “Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça. Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres, folha de taioba, pouco importa: tudo serve.”
Portanto, seja qual for o copo e o contexto — e seja a dose pro santo ou não —brindemos aqui todas cachaças, dentro e fora dos museus pois, certamente, em cada uma temos, em cores brancas e amarelas, um pouco da história do Brasil e de vários brasileiros — engarrafada, é claro.