Reportagem Rita de Podestá
Fotos Rogério Alves Dias
Graças à sabedoria do frei Rosário Jofylly — que foi reitor, por 51 anos, do Santuário de Nossa Senhora da Piedade —, um novo método para tratar a maturação do queijo mineiro surgiu da combinação entre cuidado, fé e o clima da Serra da Piedade.
Difícil é encontrar um mineiro que não tenha afeição aos sabores da terra em que nasceu. Mais raro ainda, é um mineiro que não aprecie um legítimo queijo minas. O alimento faz parte da história da humanidade há séculos. Em Minas, parece ter sempre estado ali.
Histórias contam que um nômade árabe, enquanto atravessava o deserto carregando um cantil cheio de leite, descobriu o queijo por acidente. Ao parar para se alimentar, verificou que o leite havia se separado em um líquido aquoso pálido e um amontoado de sólidos brancos — o soro e o coalho. Milhares de anos depois, outro feliz acidente. Esse já no século XX, na Serra da Piedade, próxima ao município de Caeté, a 50 km de Belo Horizonte. Foi a 1.746 metros de altitude que frei Rosário Jofylly descobriu uma receita infalível para a maturação do queijo mineiro: clima, cuidado e fé.
Reitor do hoje conhecido Santuário Nossa Senhora da Piedade por 51 anos, frei Rosário ajudou a edificar toda a estrutura do local e fez da montanha o próprio refúgio espiritual. Estudioso e sábio, recolhia-se, em algumas ocasiões, na gruta do eremita, para meditar e estudar, lugar no qual a temperatura pode chegar a 5 graus no inverno. Num desses recolhimentos, levou consigo uma capanga de queijo canastra, a qual esqueceu por lá. Ao voltar, a boa surpresa: o queijo havia criado uma fina crosta, que protegia um interior de sabor inquestionavelmente melhor. Uma poderosa mistura de temperatura, umidade e altitude criou o que viria a ser uma iguaria mineira.
Carinho e devoção
Desde então, o religioso dominicano — paraibano, nascido em 1913, mas erradicado mineiro das montanhas na década de 1950 — passou a maturar as peças que comprava na Serra da Canastra dentro da pequena caverna, na encosta da ermida. Porém, não só de retiros vivia o Frei. A fé e a sabedoria dele existiam para serem partilhadas. Intelectuais, políticos, líderes religiosos e muitos fiéis vinham de longe se aconselhar com frei Rosário. Encontros que, muitas vezes, terminavam ao redor da mesa, na qual estavam sempre presentes o queijo da caverna, um bom vinho e o também famoso licor de laranja fabricado no local. Tancredo Neves foi uma das visitas ilustres, assim como Juscelino Kubitschek, que apreciava muito a amizade do frei. No local havia também uma horta farta e a criação de cabras e carneiros, tudo para consumo próprio.
Quem relata essas histórias é Alair Silva, que há 22 anos trabalha no santuário. Alair fala do frei com carinho e devoção e conta, orgulhoso, que aprendeu a arte da maturação do queijo, assim como tantos outros ensinamentos de vida, na convivência com o religioso. Ele ajudou nas obras do santuário, trabalhou no restaurante e, hoje, é um dos guardiões da pequena caverna. Acontece que, quando frei Rosário faleceu, em 2010, a procura pelo queijo não cessou. Foi então que o santuário decidiu continuar a produção, como conta Alair. “Antes, o frei Rosário curava o queijo só pra o consumo dele mesmo. E quem vinha visitar o frei sabia que comeria um queijo bom. Com a morte dele, o santuário resolveu manter a tradição. Vinham muitos religiosos, políticos. O frei era muito sábio. O pessoal gostava de vir para conversar e pra saborear um bom queijo acompanhado de um bom vinho.”
Cultivar a paciência
Uma homenagem que, por pouco, não se deu. O queijo é curado por bactérias lácteas que se desenvolvem e sobrepõem-se às bactérias ruins, ou seja, destrutivas para o alimento. A aparência final não é das mais atrativas. Alguns clientes estranham. Alair conta que já teve comprador reclamando que o queijo estava mofado. Mal sabia que esse é o grande segredo que quase se perdeu. Acontece que o fungo que age no alimento ficou escondido no armário que o frei construiu para armazenar os queijos e nos panos que eram usados. A produção foi retomada reutilizando-se o armário, mas se deu graças a pedaços de pano esquecidos na caverna. Mais uma boa obra do acaso. Hoje, acredita-se que esse é o único queijo curado em caverna no Brasil.
O processo de maturação dura, pelo menos, um mês. Nada de retirar antes da hora. Alair cultiva a paciência da espera e do cuidado. Todos os dias, vai até a caverna, vira as peças, troca os panos, passa vinagre na madeira e observa o crescimento da crosta ao redor da iguaria. O queijo nunca é lavado, o resultado é uma casca grossa que envolve uma massa cremosa. Degustá-lo é uma experiência completa, que envolve odor, sabor e textura. Imediatamente imagina-se uma mesa de vinhos, massas e pães — comandadas por essa experiência meio gastronômica, meio espiritual. É que provar o queijo ali, onde reina a paz e a calma, imerso em uma típica neblina ou sob um céu azul inebriante, torna o sabor do alimento muito além do descritível.
Homem da montanha
Quem entrega o produto é o mesmo fornecedor de salgados da lanchonete. O queijo vem jovem, e a maturação ocorre no tempo dele, enquanto apreciadores aguardam, ansiosos, o dia no qual, finalmente, será vendido no restaurante do santuário. É preciso ligar antes e saber a data certa da próxima venda. A dica é ficar atento. Pode acontecer de já estarem todos reservados aos fãs mais assíduos. Sejam eles moradores da região, sejam das cidades próximas e até de outros países. Franceses e italianos, por exemplo, são frequentes.
Aliás, um importante italiano é cúmplice nessa empreitada, assim como na manutenção e no cuidado do santuário. O padre Virgílio Resi, italiano nascido em San Piero in Bagno, em 1951, veio para Belo Horizonte em 1981 e, onze anos depois, tornou-se reitor do santuário. Trabalhou ao lado do frei Rosário, com quem manteve uma sincera amizade. “Um italiano que chamamos de o ‘homem da montanha’, veio da Itália e se apaixonou pelas Minas Gerais, pelas montanhas e pelo santuário de Nossa Senhora da Piedade. Um homem que nos conduzia a viver a mística da montanha.” conta padre Carlos Antônio da Silva, hoje pró-reitor do local. Do gosto pela gastronomia, surgiu, inclusive, a ideia de criar uma pizzaria no restaurante do santuário. Alair foi o escolhido para aprender o ofício de pizzaiolo em Belo Horizonte.
Comunhão entre natureza,
sabores e fé
A comunhão entre religião, natureza e sabores parece natural quando se trata de um lugar no qual é impossível não sentir o poder de algo maior. O santuário já chegou a receber até 10 mil pessoas de uma só vez. Nesse anos 2017 comemora-se os 250 anos do dia em que os fidalgos portugueses Antônio da Silva Bracarena e irmão Lourenço chegaram ao local e construíram a pequena igreja em homenagem à Santíssima Virgem Maria. Em 1958, o papa João XXIII proclamou Nossa Senhora da Piedade padroeira de Minas Gerais, o que fortaleceu ainda mais o esforço do frei Rosário em preservar, não apenas o Santuário, mas todo o conjunto paisagístico, arquitetônico, histórico e cultural da Serra da Piedade. Foi devido à dedicação dele que, em 1956, o conjunto arquitetônico e paisagístico da Serra da Piedade foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Justo. Todo o local é digno de ser preservado. Inclusive a imagem que hoje orna o altar da ermida, do século XVIII, de uma beleza que hipnotiza. A autoria foi atribuída ao grande mestre Aleijadinho.
Hoje o local é, também, um atrativo turístico que encanta, com a vista panorâmica das cidades de Belo Horizonte e Caeté e do Caraça. Há, também, o Observatório, aberto para visitas escolares, e o restaurante, que parece estar sob as nuvens. Além disso, será construído o Museu Regina Mundi, um projeto do arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, dom Walmor Oliveira de Azevedo. Trata-se de um museu mariológico, que irá contar com mais de mil imagens de Nossa Senhora, além de estudos e toda a vasta biblioteca do frei Rosário. “O frei Rosário foi um homem profundamente de Deus, mas também um homem ousado. Hoje o frei deixa para nós essa história. Estamos carentes de homens de visão. Que compreendam o saber, o conduzir, o entender a evolução do mundo da humanidade por meio dos livros, mas também da riqueza da fé”, relata padre Carlos, com força nas palavras e brilho nos olhos.
Os restos mortais do frei Rosário e do padre Virgílio estão na cripta de São José, no santuário. Uma homenagem a esses homens que prezavam o ouvir, a arte da convivência, do saborear da vida simples e que tinham as portas sempre abertas e a mesa sempre feita, como bom mineiro ou, por que não?, como bom italiano.
Inegável que se trata de um patrimônio de fé, sabedoria e sabores, como bem coloca padre Carlos: “Olha como tudo aqui se conjuga, a beleza do santuário, a Serra da Piedade, a palavra, a sabedoria, o legado de pessoas que vieram primeiro e se encantaram. Sem ficarmos presos a um passado que não vai voltar — mas com a intenção de, através do passado, entender nosso tempo aqui, hoje”.
Não é à toa que, desse conjunto primoroso, surgiu o queijo Frei do Rosário, uma experiência gastronômica que nunca poderá destoar-se da história de Minas. Um queijo mineiro por excelência, mas universal por vocação.