Regenerar é preciso

 

Muito além das boas práticas que respeitam a natureza durante as viagens.

O termo “turismo regenerativo” traz a responsabilidade do setor em atuar ativamente não apenas para reduzir os impactos do turismo nos territórios, mas para melhorar esses espaços e oferecer viagens com mais qualidade para turistas e anfitriões.

Por Juliana Afonso/Fotos Cezar Félix

Em um território no sudeste de Minas Gerais, um empresário tomou para si a missão de recuperar cerca de 6 mil hectares de terra. No início, apenas 20% da área era mata virgem. Após 40 anos de plantio cuidadoso e contínuo de espécies nativas da Mata Atlântica, 80% da vegetação foi recuperada. Apesar do sucesso na regeneração ambiental, a equipe percebeu que o local não gerava impacto social na mesma medida. Foi quando o lugar passou a contar com um forte aliado: o turismo. Hoje, a Comuna do Ibitipoca é um projeto socioambiental que integra hóspedes, comunidade local e ecologia.

Vista do vilarejo Mogol: Comuna do ibitipoca, modelo de turismo regenerativo. Foto Divulgação/Comuna do Ibitipoca.

Ações como essa têm sido a tônica do chamado turismo regenerativo, conceito que ganhou força durante a pandemia da Covid-19. O turismo regenerativo propõe que o setor atue ativamente, não apenas reduzindo os seus impactos nos territórios, mas deixando esses espaços ainda melhores do que estavam. “Sustentar não é mais suficiente para o tanto que a gente já degradou o planeta, precisamos regenerar”, afirma Ana Duek, consultora de marketing e fundadora do portal Viajar Verde.

A proposta não busca competir com o ecoturismo ou o turismo sustentável, conceitos cunhados na década de 1990 para denominar práticas que respeitam a natureza durante as viagens. O turismo regenerativo busca ir além, propondo um entendimento sistêmico no qual o espaço e seus habitantes estão interconectados e evoluem juntos. “Antes de ser bom para receber, o local precisa ser bom para viver. Ou seja, não adianta chegar de fora querendo impor um tipo de turismo, de visitação, que não interesse e não gere benefícios para aquele destino”, afirma Ana.

Entendimento no qual o espaço e seus habitantes estão interconectados e evoluem juntos.

A regeneração encontra o turismo

 O conceito de regeneração nasceu na década de 1990, na Califórnia, Estados Unidos, associado às áreas de design e arquitetura e à proposta de construções absolutamente sustentáveis. A proposta se ampliou para outros setores a partir da compreensão de que os efeitos da ação humana no planeta eram irreversíveis — e que a sustentabilidade não seria capaz de diminuir os danos.

A compreensão sobre a importância de aplicar a proposta também no setor turístico começa a tomar forma em 2016. “O conceito de regeneração nasce do fato do ser humano extrair deste planeta mais do que   capacidade de recuperação dele. Atualmente, é como se necessitássemos de 1.7 vezes o planeta. É daí que vem a necessidade de mudar: não basta apenas sustentar, porque sustentar é manter essa atitude extrativista”, afirma Jorge Moller,  diretor da ONG Regenera Espaço, um dos pioneiros no desenvolvimento de produtos turísticos de natureza no Chile.

Exemplo de uma casa sustentável, erguida com materiais e mão de obra local.

Ainda que as propostas não sejam excludentes entre si, existem diferenças entre o turismo sustentável e o turismo regenerativo. Para Sônia Teruel, co-fundadora do The RegenLAB for Travel, plataforma que facilita a transição para regeneração no setor turístico, uma das principais diferenças é que a sustentabilidade ainda coloca o ser humano acima da natureza, mantendo uma visão antropocêntrica do mundo. “O turismo  regenerativo entende que o homem evolui com a natureza e tudo que a gente planeja precisa ter isto em mente”, afirma ela.

Outra diferença é a forma de participação das comunidades. Na sustentabilidade, quando as necessidades da população são diferentes do negócio turístico, os agentes buscam formas de compensação, mas a proposta não se altera. A regeneração, por sua vez, atua a partir da cocriação dos projetos turísticos com as comunidades.

A regeneração atua a na criação dos projetos turísticos com as comunidades.

Sonia cita como exemplo o Playa Viva, projeto desenvolvido em uma pequena comunidade em Juluchuca, no litoral oeste do México. A proposta inicial era construir um resort com casas na praia, mas o local abrigava uma antiga pirâmide asteca e a construção iria ocasionar um processo de erosão e destruição do ecossistema local, além de prejudicar a preservação do sítio arqueológico. Para conciliar turismo e meio ambiente, foi proposta a construção de casas nas árvores, feitas com materiais e mão de obra local. O projeto também se envolveu em diversas ações da comunidade, contribuindo para a educação ambiental, as práticas de agricultura e a restauração da bacia hidrográfica. Em uma palestra para o Fórum MAPS de Sustentabilidade em Turismo, em 2020, Bill Reed, arquiteto e diretor do Regenesis Group, empresa de design regenerativo que desenvolveu o projeto de Playa Viva, foi claro e objetivo: “você não pode construir o projeto que você acha que precisa construir, você precisa se envolver no ecossistema”.

Não existe um padrão a ser seguido para aliar turismo e desenvolvimento territorial. O objetivo é sempre o florescimento do destino e das suas comunidades. É por isso que a regeneração se preocupa em envolver todos os atores locais. A ideia é que, além da experiência de lazer, todos se sintam responsáveis pelo destino e pela proposta de deixar aquele local melhor do que foi encontrado. “Não podemos pensar que o turismo não gera impactos, ele gera impactos, mas se vamos ter impactos, que eles sejam positivos para a comunidade”, afirma Jorge Moller.

O turismo regenerativo se preocupa em envolver todos os atores de uma localidade.

Aposta do setor no pós-pandemia

O debate sobre o tema deu um salto após a pandemia da Covid-19. Com as flutuantes regras de lockdown e o fechamento de fronteiras, algumas cidades viveram mudanças inimagináveis. Um dos exemplos mais conhecidos é Veneza, na Itália, onde os canais voltaram a ter águas cristalinas com a interrupção dos cruzeiros e outros tipos de embarcações turísticas que atracavam nos portos todos os dias, despejando grandes quantidades de combustível nos canais.

Cenas como essa mostram a capacidade do ser humano de impactar o meio ambiente para satisfazer as próprias necessidades. Exemplo disso são os dados divulgados pelo Instituto Weizmann de Ciência, de Israel: segundo o estudo, o número de animais selvagens em todo o planeta é de apenas 5%. Os outros 95% são animais domésticos, principalmente bois e porcos, criados para alimentação humana.

E o que isso tem a ver com o turismo? Tudo. A propagação de vírus está relacionada à invasão de ecossistemas pelo ser humano. Segundo uma pesquisa realizada pelo Fórum Econômico Mundial, 31% dos mais de 12 mil surtos de doenças em todo o mundo entre os anos de 1980 e 2013 estão ligados a ambientes que foram devastados. Com a continuação da devastação da biodiversidade e as mudanças climáticas, viveremos novas pandemias e precisaremos nos isolar para resistirmos a novas doenças.

A preservação dos ecossistemas é o mais importante e a regeneração é uma aposta promissora.

A preservação dos ecossistemas é importante para todos os setores — e a regeneração é uma aposta promissora. “A gente já tentou por meio do ecoturismo, do turismo sustentável, mas a depredação dos lugares continua. A próxima onda é a mudança climática. Por isso, a regeneração é tão importante”, alerta Ariane Janer, secretária executiva do Global Ecotourism Networking e conselheira da Associação Mico Leão Dourado.

Tendências em disputa

Apesar de quase dois anos de pandemia e questionamentos sobre a necessidade de pensarmos em formas menos destrutivas de viver e viajar, o avanço da vacinação e a abertura das fronteiras incentivou as empresas a oferecerem promoções e descontos. E os turistas têm a intenção de aproveitar. Uma pesquisa da plataforma Booking.comcom mais 20 mil viajantes em 28 países mostrou que a maioria pretende viajar ainda mais quando a pandemia acabar, como uma forma de correr atrás do tempo perdido — o que seria, por si só, uma metáfora sobre o nosso tempo.

A especialista Ana Duek se diz muito cética com relação a uma mudança de comportamento em larga escala. “Acho que o aprisionamento em que estamos vivendo pode ser um gatilho para que a gente volte a viajar de forma inconsequente. Já tem muita gente viajando com comportamentos irresponsáveis. Não só com relação à pandemia, mas com outras coisas relacionadas à sustentabilidade, como o excesso de plástico.” Ana acredita que apenas quem já dava valor a empresas e espaços e práticas responsáveis vão continuar a se preocupar com isso no momento em que viajam.

O turismo responsável — e até o regenerativo — é uma tendência.

Para muitos, porém, a mudança está chegando. É o caso de Carla Mott Ancona, diretora da MAPS, empresa que atua no planejamento e implementação de projetos sustentáveis na área do turismo. Carla é a prova viva dessa mudança: após atuar por anos com viagens de incentivo, ao lado de grandes empresas de eventos, ela saiu do setor para buscar um trabalho com mais propósito. “Há três anos abandonei essa vida para abraçar iniciativas sustentáveis. Hoje, eu vejo muitas pessoas fazendo o mesmo. Está ficando claro pra todo mundo que essa é uma questão primordial. Em tudo que eu tenho visto, ouvido e participado, o turismo responsável — e até o regenerativo —, é uma tendência”.

 A busca pelo tema realmente não para de crescer. A equipe do MAPS se prepara para a segunda edição do Fórum, com o tema “Regeneração Já”. Os cursos sobre turismo regenerativo oferecidos pelo The RegenLAB for Travel têm contado com a participação  de pessoas de diversas partes do mundo. “Eu creio firmemente que sim, há uma parcela muito importante da população que deseja ter um contato mais próximo com a natureza e viajar de uma forma mais consciente”, afirma a especialista Sonia Teruel.

Autenticidade não é moeda

O turismo regenerativo ainda é um conceito novo  no Brasil e os projetos mais conhecidos têm sido promovidos por grandes empresas. O resultado é a sensação de que esse tipo de experiência é inacessível para a maior parte da população. Afinal, para passar uma temporada em um ecoresort na Floresta Amazônica ou se inscrever em um curso de chocolateria na Bélgica, é preciso ter dinheiro. Mas as iniciativas de turismo regenerativo nem sempre levam esse nome: o turismo de base comunitária, modalidade de turismo desenvolvida pelos próprios moradores de um lugar, propõe, há anos,  experiências autênticas e acessíveis.

Os povos originários e indígenas, além das  comunidades quilombolas e rurais, têm investido em atividades turísticas como uma forma de gerar renda extra e de se conectar com outros mundos a partir do seu modo de vida. Ao viver uma experiência autêntica, o turista cria uma relação de solidariedade com aquela comunidade — e não é raro que o turista se engaje em ações de preservação do local e na melhoria da qualidade de vida dos seus habitantes.

O turismo de base comunitária, modalidade de turismo desenvolvida pelos próprios moradores de um lugar, propõe experiências autênticas e acessíveis.

Pode parecer contraditório, mas o importante é não investir todas as fichas no turismo. “Alguns locais crescem muito com o turismo e começam a pensar ‘agora eu vou viver disso’. Às vezes nem é a comunidade, mas existe uma pressão de pessoas de fora que começaram a atuar ali. A ideia não é essa. O turismo é uma atividade extra que vem para somar como uma fonte de renda”, explica Ana Duek. Ela afirma que é fundamental que as comunidades continuem a viver das atividades que já desenvolvem, seja a agricultura, a pesca, o artesanato, ou recuperem práticas antigas esquecidas na “modernização”. Sem isso, a autenticidade tão almejada pelo turista também desaparece.

Regeneração é o conceito da vez, mas como lembra o especialista Jorge Moller, nenhuma definição é dona da verdade: são todas visões complementares que buscam gerar desenvolvimento. “Economia circular, sustentabilidade, turismo regenerativo. Não importa a palavra, o importante é ser responsável. Algo que os povos originários praticam há milhares de anos com o nome de buen vivir”. Jorge acredita que a América Latina tem muito a oferecer quando o assunto é vivências autênticas em comunidades, e que as comunidades também têm muito a ganhar com o turismo regenerativo. Ele aposta que, em cerca de 15 anos, a América Latina vai ser um grande hub de experiências comunitárias. O que o turismo precisa promover é a ponte para que essa troca ocorra a partir das experiências locais.

Comuna do Ibitipoca: turismo regenerativo que busca integrar hóspedes, comunidade local e meio ambiente. Foto Divulgação/Comuna do Ibitipoca.

Comuna do Ibitipoca

A Serra do Ibitipoca, no sudeste de Minas Gerais, é conhecida por suas montanhas exuberantes e cachoeiras de águas cor de mel. É nesse santuário que está localizada a Comuna do Ibitipoca, um projeto de turismo regenerativo que busca integrar hóspedes, comunidade local e meio ambiente.

A propriedade de 6 mil hectares passou por um intenso processo de reflorestamento e refaunação que resultou na recuperação de 80% da vegetação nativa, gerando um cinturão de proteção para o Parque Estadual do Ibitipoca. O próximo desafio foi pensar como o espaço poderia gerar impacto social positivo. “O primeiro passo para isso foi transformar a sede da fazenda em uma pousada. Em vez de contratar uma equipe capacitada, capacitamos os moradores locais. Mantemos esta política de constante aprendizado e hoje temos uma equipe sintonizada com nossos valores”, conta Raquel Ribeiro, jornalista da Comuna do Ibitipoca. O lugar também busca incentivar a economia local ao comprar artesanato e ingredientes orgânicos de pequenos produtores.

Conceito de hospedagem na Serra do Ibitipoca. Foto Divulgação/Comuna do Ibitipoca.

Os turistas podem escolher se hospedar na antiga sede da fazenda, em vivendas afastadas entre as montanhas ou em casas no Vilarejo do Mogol, onde o visitante pode ter mais contato com a comunidade local. A Comuna atende um público restrito devido ao número limitado de casas e a proposta, por enquanto, não é ampliar: “O impacto do turismo é baixíssimo, pois usamos energia solar, fazemos compostagem, reciclamos os resíduos, incentivamos uso de bicicleta, da alimentação vegetariana e neutralizamos a pegada de carbono”, explica Raquel.

 

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