Inspirado pelo rio São Francisco, o consagrado estilista mineiro criou uma das mais belas exposições já vistas nos últimos anos em Belo Horizonte — Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga.
O sucesso de público foi estrondoso e acabou por revelar que o mineiro tem muita afinidade como o Velho Chico e se preocupa com o seu futuro. Nesta entrevista, como não poderia deixar de ser, Ronaldo Fraga fala de moda, “o instrumento de comunicação mais eficiente do nosso tempo”, conta de onde brotou a idéia de realizar a exposição, critica a transposição das águas do São Francisco e diz que o mais importante é ser universal.
Por: Cézar Félix
Fotos: Cacaio Six
— Como o senhor avalia a repercussão da exposição Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga ?
A exposição superou todas as expectativas aqui em Belo Horizonte, inclusive quebrou o recorde de visitação da história do Palácio das Artes. Em São Paulo, aconteceu o mesmo o fenômeno, o movimento de visitantes foi enorme. Registramos visitas de escolas que provocaram verdadeiros congestionamentos de pessoas. Os monitores simplesmente não deram conta de atender tanta gente. Lá eu percebi um fenômeno interessante, pois a divulgação “boca a boca” é muito eficiente. Ao invés de diminuir com o tempo, a procura cresceu. Houve até uma proposta dos organizadores de aumentar para 20 dias a temporada da exposição, cuja data de encerramento estava marcada para 26 de Junho.
— A exposição ajudou a repercutir ainda mais o seu trabalho como estilista?
Foi justamente por um outro ângulo que a exposição também superou todas as minhas expectativas: ela veio reafirmar um antigo desejo meu, o de mostrar que a moda é o instrumento de comunicação mais eficiente do nosso tempo. A moda interpreta conceitos antropológicos, antropofágicos, históricos, culturais e econômicos. Porém, há uma enorme dificuldade em se compreender este alcance da moda no Brasil. Aqui, o enfoque da atividade pende muito mais para o cenário econômico e para o cenário das celebridades. Todavia, o mundo globalizado está aí para nos provar que a moda é também uma divisa cultural de povos como os franceses, os ingleses, os italianos e os japoneses. A moda, por ser esse instrumento eficiente de comunicação, pode se expressar de todas as maneiras possíveis e inimagináveis, principalmente num país onde se lê muito pouco — mas onde as pessoas se interessam muito por moda. A mídia espontânea alcançada pela moda só perde para a final da Copa do Mundo quando o Brasil joga.
— Para pensar e criar esta exposição, o senhor deve ter tido uma relação muito próxima com o rio São Francisco.
O São Francisco fez parte da minha infância. Meu pai era apaixonado pelo rio, considerava as suas margens os lugares mais belos do mundo. Então, a minha infância era povoada pelas coisas do Velho Chico, eu aguardava ansioso o meu pai voltar das pescarias. Tudo que ele trazia do rio me marcava muito, do artesanato aos peixes gigantescos, mas principalmente as lendas. Ele sempre trazia histórias fascinantes, cresci com essa mística em torno do rio. Por outro lado, eu também tinha muito medo de que quando encontrasse o São Francisco real, talvez ele não correspondesse a essa minha memória imagética. Então eu fui adiando esse encontro. Meu pai faleceu quando eu tinha 11 anos… Até que no auge da discussão em torno da transposição, eu falei: esse é o momento de ir ao rio. Eu quero ter uma opinião sobre este assunto. Hoje, porém, para eu parar e poder viajar, tem que ser um afazer relacionado ao meu trabalho — felizmente ou infelizmente, não sei dizer ao certo. Decidi criar uma coleção inspirada no rio. No desejo de fazê-la, eu fui ao rio várias vezes e lhe garanto: o rio São Francisco da minha memória não é diferente, é a mesma coisa do real, só que no real vem o cheiro, vem os esboços, vem o povo e tudo ganha a forma. O rio é a paixão. Fiz a coleção, fiz o desfile em 2008, que renderam várias repostas, pois ele foi para o Museu de Arte de Tóquio, foi pra Santiago do Chile, foi para Madrid. Mas o rio continuava em mim. Todas as vezes que surgia o assunto São Francisco me vinha o pensamento de fazer alguma coisa, mas que não era o caso de uma nova coleção, que talvez se esgotaria nos efêmeros 15 minutos de um desfile. Daí surgiu a idéia da exposição Rio São Francisco navegado por Ronaldo Fraga para percorrer o máximo de cidades que fosse possível. Com a exposição, eu ganhei um outro suporte, uma outra eloquência para me expressar para um público mais diverso. A idéia era ter uma exposição para falar para crianças de todas as idades, dos 8 aos 80.
— Quando o tema é o São Francisco, logo vem à tona questões como a tão discutida transposição de suas águas e a crescente degradação do rio. A exposição também marcou uma postura política em relação a esses temas?
É impossível falar do São Francisco sem ter uma postura política em razão, é claro, da questão da água no Brasil, das questões culturais e da vida do povo ribeirinho. No mundo inteiro e principalmente no Brasil, falar de recursos naturais é defender uma posição política — veja a questão da Usina de Belo Monte e esse absurdo novo código florestal, temas que estão na ordem do dia. Tudo isso faz parte da do atual momento histórico brasileiro e global. No caso da exposição, eu nunca quis que o olhar político pudesse ofuscar a cultura solar do rio São Francisco. Acho que consegui.
O rio São Francisco da minha memória não é diferente, é a mesma coisa do real, só que no real vem o cheiro, vem os esboços, vem o povo e tudo ganha a forma. O rio é a paixão.
— O senhor acha que o brasileiro em geral tem noção da importância e do significado do rio São Francisco?
Não existe outro rio que desperte tanto afeto no brasileiro do que o Velho Chico, disto não tenho a menor dúvida. Um exemplo claro foi que inicialmente pensávamos em levar esta exposição para São Paulo e para os estados banhados pelo rio. No entanto, tenho recebido pedidos para levar a exposição para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. O fato é que a história da formação da cultura brasileira passa pelo São Francisco. Tenho recebido mensagens de crianças que foram na exposição em excursões da escola, mas que depois voltaram levando os pais e outros parentes. Foram muitas mensagens, cartinhas, falando do rio, explicando que o primeiro contato foi por meio da exposição. Outro fato interessante foi o seguinte: no ano passado, fui convidado para ir a uma escola em um bairro de alto risco social na periferia de Betim onde existe um projeto muito bacana da Fiat Automóveis. Quando eu cheguei lá, as crianças reproduziram a exposição, foi algo maravilhoso, surpreendente. Se com a sua arte você consegue chegar neste lugar, ter a resposta destas crianças, o seu esforço já valeu a pena.
— Qual é a sua opinião sobre o projeto de transposição das águas do São Francisco?
Apesar de existirem alguns trabalhos isolados de revitalização, o rio passa por várias situações, por várias gestões de um estado para outro. É impossível pensar em salvar o São Francisco se temos um afluente como o Rio das Velhas, que recebe o Ribeirão Arrudas. E o que dizer dos esgotos domésticos que poluem o rio em praticamente toda a sua extensão? Como concordar com este projeto, se com os recursos desta transposição seria possível revitalizar completamente o rio? A transposição vai ser benéfica exclusivamente para o agronegócio, pois aquelas terras não são dos mais pobres. Quando você chega nas margens do São Francisco, é impossível não lembrar da eloquente carta de Américo Vespúcio ao rei de Portugal: ele estava sem palavras para descrever que até 200 milhas para dentro do mar a água era doce. Hoje, na foz, a água mal cobre os joelhos continente adentro. Então, eu me pergunto: onde está o futuro deste rio? Nós estamos falando não apenas de um desastre ambiental ou de um desastre econômico, mas também de uma tragédia cultural. Quando manualismos, expressões específicas, genuínas, deste povo estão sendo destruídos, a cultura ribeirinha literalmente evapora. Vou falar de um exemplo na área têxtil e manual: os bordados estão se extinguindo. As novas gerações simplesmente não são mais tomadas pelas emoções que os seus pais demonstravam em relação ao rio. Eu sou tomado por uma grande emoção quando vou ao rio e tento passar isso para os meus filhos.
— O que o senhor observa quanto à potencialidade turística do rio?
Claro, o potencial turístico é enorme. Veja esse exemplo do médio São Francisco, o caso do vapor Benjamim Guimarães. Apesar de todo esforço do pode público local, o que o barco recebeu foi uma reforma e não uma restauração. Muitas pessoas já me perguntaram como fazer para dar um passeio no Benjamim Guimarães. Maria Bethânia me ligou recentemente dizendo que queria aproveitar sua vinda a BH para ir a Pirapora, pois ela sonha em navegar no Benjamim Guimarães. Mas quando você chega em Pirapora, o que você vai ver é um barco repleto de mesinhas de plástico com propaganda de cerveja onde o pagode rola solto. Daí, você olha no entorno e não vê lojas de artesanato, que poderiam ser abrigadas naqueles galpões maravilhosos que estão caindo aos pedaços. Por que não se cria lá um centro de referência histórica e cultural do rio São Francisco? Por não se constrói um museu? Imagine o quanto aquela cidade ganharia? Mas aí eles constroem um centro de convencões, que é uma estufa de vidro, um projeto totalmente equivocado. O fato é que o potencial é enorme, mas completamente inexplorado. Agora, se eu for falar do potencial da nascente, da exuberância da Serra da Canastra, teríamos que gastar muitas páginas. Esse pensar o rio São Francisco também passa pela viabilização de sua potencialidade turística.
A minha fala, a minha escrita, a minha lente para ler, o meu sotaque, tudo o que me decodifica é a minha cultura — e a minha cultura é Minas Gerais.
— A moda mineira é consagrada como uma referência nacional em qualidade. O senhor acredita que a atividade já tem vitalidade e visibilidade suficientes para se tornar também uma referência como um setor propulsor do turismo de eventos e negócios?
Isso começa a tornar-se realidade, vem sendo construído nos últimos cinco anos, ganha forma e se desenvolve por meio do salão de negócios do Minas Trend Preview. O que havia aqui anteriormente era o aval da cultura de Minas relacionada ao fazer têxtil, que remonta à própria história da formação têxtil no Brasil que é originária de Minas. A indústria têxtil foi a primeira atividade econômica liberada pela coroa portuguesa, pois era preciso vestir os escravos. Além disso, a cultura européia do ciclo do ouro trouxe o fazer da roupa bem feita, a roupa de festa. Surgiram então os alfaiates e as costureiras. A moda de Minas é muito relacionada à roupa decorativa. Então quando se fala em moda de Minas, todos sabem que é roupa de qualidade, que é coisa moderna, arrojada. Porém, nós nos apropriamos muito pouco desta história.
— Como assim?
Não existe aqui essa apropriação, existe muito mais fora de Minas. Nós ainda temos preconceito para fazer a nossa cultura trabalhar a nosso favor. Enquanto no mundo inteiro, no mundo globalizado, o grande valor está justamente no genuíno — quando você dá ao regional um caráter universal — alguns segmentos locais ainda consideram o regional pejorativo, coisa para pobre, algo caipira, que deve ser escondido.
— Como escreveu Dostoiévski : “Se queres ser universal, cante a sua aldeia …”
Claro, claro que sim! Eu não levo Minas, Minas vem comigo onde quer que eu vá. Qualquer coisa que eu faça no meu tempo — um texto, um livro, uma roupa, uma receita de bolo — eu quero que ela venha carregada das referências culturais de quem a criou. Nós temos um país com uma cultura riquíssima e diversa, e dentro deste Brasil, nós temos um estado com uma cultura ímpar. Esta cultura mineira conseguiu colocar numa mesma cor, numa mesma imagem, num mesmo bordado, numa mesma nota musical, a metrópole e a província. Isso é muito rico, isso é muito caro. Se eu nasci neste estado, no momento em que eu mostro a minha roupa, dela cai pó de minério. Quando Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade estão na minha roupa é porque eles são tão universais quanto Minas Gerais. A minha fala, a minha escrita, a minha lente para ler, o meu sotaque, tudo o que me decodifica é a minha cultura — e a minha cultura é Minas Gerais.