Sam Thomé

Igreja Matriz de São Thomé das Letras, cuja construção foi iniciada em 1785 por iniciativa João Francisco Junqueira.

Sam Thomé — Sobre a Pedra, o Homem

Os 30 anos de um ‘cult movie’ revive a história da mística cidade de São Thomé das Letras, no sul de Minas Gerais.

Por Thomaz Cardoso
Fotos Sérgio Amzalak

 

Uma história de 30 anos, às vezes, pode ter bem mais do que isso. Contam ou contavam, então, pois que hoje não se conta mais, já que vão distantes as antigas conversas ao pé do borralho, que algo sucedeu de estranho e singular numa antiga fazenda dessas Minas Gerais, ao sul da capitania, em pleno século XVIII, na sua segunda metade. A aventura de um escravo fugido, de nome João Antão, propriedade do Capitão João Francisco Junqueira, assim como sua, de João Francisco, a fazenda Campo Alegre e uma boa escravaria. Tanto, que o sumiço do negro quase passa batido, e em seu encalço não foram lançados sequer os préstimos de um capitão do mato. Ficou, João Antão, sobrevivendo do que a natureza lhe pôde dar, num refúgio da própria Campo Alegre, vasto latifúndio, no alto da serra que tomaria o nome de São Thomé.

Mas não tinha esse nome ainda, quando João Antão passou por lá. Descrita como uma crista quartzítica, uma rocha de itacolomito incrustrada nos morros e morrotes de dobramentos pré cambrianos do Planalto do Alto Rio Grande, orientada pelo eixo NE-SW, a serra  alcança a cota de 1.400 metros de altitude no Pico do Gavião. Nessas alturas viveu João Antão, fôrro, apartado dos demais, de tudo, até que um dia… E um dia sempre alcança a gente. O dia de João Antão foi topar com um estranho no lugar, bem vestido aos olhos, algo religioso, que lhe propôs correr ao antigo senhorio com uma carta sua, endereçada, pelo que não seria castigado se assim o fizesse.

Pequena imagem e inscrições rupestres

Aquilo, aquela proposta, bem podia ser um artifício traiçoeiro, uma armadilha. Alguém a mando do próprio João Francisco, bem podia. Mas, aos ouvidos de João Antão, decerto fez algum sentido, se é que o cativeiro pode ter algum sentido. O retorno à sede da Campo Alegre, se por um lado o fazia escravo novamente, por outro o redimia daquele auto exílio, já custoso, de anos de solidão, da liberdade de todos os sons, menos o socorro da voz humana. Talvez tenha sido assim, e João Antão, que se retira da história mais a frente, sem deixar rastro do seu destino, fez o que devia ao desenredo da narrativa. Serviu de carteiro.

Ninguém nunca soube do que tratava aquela missiva. Tampouco se soube algo de novo sobre quem a escrevera. Ao retornar ao cimo da serra, numa expedição comandada pelo próprio João Francisco Junqueira, o que se encontrou, na pequena gruta que fora morada de João Antão, onde o arenito, por processo natural atribuído a líquens vermelhos, sugeria uma profusão de inscrições rupestres, foi uma pequena imagem, uma peça de estatuária lavrada em madeira, tida e havida como sendo do apóstolo Thomé. Tal achado motivou João Francisco a erigir uma capela no lugar, pelo que passou a ser conhecida a serra como Serra de São Thomé, e o núcleo urbano que lá se formou, com o passar do tempo, de São Thomé das Letras, em alusão às supostas inscrições.

Uma cidade de pedra, sobre a pedra. Mas, acontece que a imagem de São Thomé, tendo lá seus motivos, era reticente em relação à capela, e sempre voltava, como por encantamento, para a gruta de João Antão. Isto, até que se construísse, ao lado da gruta, a atual Igreja Matriz de São Thomé, de 1785, ornada que é com pinturas do mestre José da Natividade. Aí a estátua sossegou. Por mais de dois séculos, vigiada de perto pelo fervor religioso da população local, sempre esteve presente a seus cultos e festas e procissões, até o seu desaparecimento definitivo em 1991, em plena semana santa; dizem, que por furto, embora se espere o seu retorno pra qualquer momento.

1983 — Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão

Uma história de 30 anos tem os 30 anos que tem. Belo Horizonte, em 1983, era ainda uma cidade possível, acanhada mesmo, começando a viver as intervenções urbanas pontuais que lhe somaram à cara que tem hoje. O regime militar dava seus últimos suspiros, mas nos porões ainda se tramava o desassossego. Tancredo, governador do Estado, começava a discutir sua candidatura ao Colégio Eleitoral para 1985, todavia, essas seriam conversas adiadas pela votação, em 1984, da Emenda Dante de Oliveira, que propugnava por eleições diretas para presidente. “Diretas já!”; foi o coro que mais se ouviu nesses dias: de 5 mil participantes no primeiro comício de Goiânia, em 15 de junho de 1983, até o estribilho uniforme de 1 milhão e meio de pessoas, em 16 de abril de 1984, em São Paulo, passando pelas 400 mil da capital mineira, em 24 de fevereiro.

O país parecia querer-se para si mesmo, retomar-se, tamanha era a vontade dos brasileiros, de sua maior parte, expressa em todas as manifestações da vida nacional. No futebol, onde José Reinaldo de Lima, o Rei, continuava a erguer o punho cerrado na comemoração de um gol, ou nas Comunidades Eclesiais de Base; nos sindicatos e nas fábricas, como na diretoria da Metal Leve; nos jornais e no jornalismo que se fazia, excluindo-se, talvez, o da Rede Globo, sempre próxima ao poder; nas escolas, havia essa vontade, assim como no Teatro, na Música, em pichações e no Grafite ou num mural de Yara Tupinambá, nas ruas e no Cinema… em todo lugar.

Um ano antes, em agosto de 1982, Gogó, apelido do atual diretor e fotógrafo Sérgio Amzalak, voltava do Rio de Janeiro após assistir ao filme “Deu pra Ti, Anos 70”, um longa metragem realizado no Rio Grande do Sul, em Super-8, e dirigido por Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. Se era possível fazer um Filme em Super-8, como fizeram os gaúchos, o que, então, não seria possível, pensou, com uma câmera Arriflex de 16 mm, que ele vira mofando num escaninho qualquer da Escola de Comunicação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, onde cursava Jornalismo? “Uma idéia na cabeça e uma câmara na mão”, uma vontade, como ensinava Glauber Rocha, era tudo o que pedia aquele equipamento.

Chegando a Belo Horizonte, a primeira coisa que fez foi dar uma olhada naquilo, como conta: “eu, que era monitor de fotografia na escola, fui ao Rio assistir a umas palestras sobre cinema e tinha conhecido o pessoal que realizou o longa, famoso até hoje, ‘Deu pra Ti, Anos 70’. Na volta, coincidência ou não, o Tião, que cuidava dos equipamentos da Escola de Comunicação, deixou que eu e o Carlinhos (o fotógrafo Carlos Francisco Filho) fuçássemos na Arriflex. E nós fuçamos tanto que conseguimos fazê-la funcionar depois de mais de 15 anos parada. Foi quando apareceu o professor de Cinema, Paulo Pereira, e vendo a máquina funcionando, nos perguntou, muito espantado, o que pretendíamos. Aí eu disse que a gente ia fazer um filme. Ele, incrédulo ainda, mal disfarçando o escárnio, nos perguntou se tínhamos dinheiro para tanto, ao que respondi que sim, emendando logo em seguida um porquê, interrogativo e desafiador. Não havia dinheiro nenhum, nem filme, nem nada. Mas, acho que o documentário sobre São Thomé das Letras nasceu naquele momento.”

Latas de fimes “confiscadas”

A Escola de Comunicação da PUC Minas, naquele início dos anos 80, se tinha deficiências de ordem material como a maior parte de nossas escolas, em todos os níveis, tinha também um corredor enorme e escadarias, lugares onde as pessoas se achavam e se reconheciam e se reuniam e planejavam aquilo que ainda não havia. Era de um vigor enorme, aquele tempo. Tanto, que pisando assuntos os mais variados, se discutia política e a economia de 210% de inflação ao ano, a conformação cultural de nosso povo e o Cinema Alemão, a ética profissional e todas as estéticas, a poesia de João Balaio ou de Torquato Neto e a de poetas menos marginais, e a história de João Antão, e a história maior de São Thomé das Letras.

Essa história maior de São Thomé, ainda não contada, mas já enunciada àquele tempo, nos dá conta de outras personagens além de João Antão, João Francisco e o misterioso remetente. Nela se misturam o mito de Sumé, uma entidade dos grupos tupis de nossa costa, o redivivo São Thomé, apóstolo, que teria estado tanto na Índia quanto no Brasil, Chico Taquara, um eremita e curador que andou por ali, o antigo caminho do Peabiru, que ligava Cuzco, no Peru, ao Oceano Atlântico; de seres subterrâneos, de discos voadores, da Eubiose e o escambáu…

Foi, então, que nas escadarias da escola, nos fundos, em noite esfumaçada, um grupo se articulou, meio que informalmente, delegando fazeres; quer dizer, uma vez reunidos Sérgio Amzalak, Carlos Francisco Silva Filho, Berenice de Lima, Eduardo Rocha e João Batista Moreira, cursando períodos os mais diversos na escola, as coisas foram acontecendo em levas sucessivas de sincronicidade, como no caso de se achar 5 latas de um filme Kodak Eastman P&B 7222, de 16mm, guardados numa geladeira da sala dos professores, mas vencidos há mais de 10 anos. Requisitar tais latas levaria uma eternidade burocrática, assim foram sumariamente confiscadas. Uma única, a princípio, para ver se o filme reagia, se ainda sensibilizava, o que foi possível constatar no próprio laboratório fotográfico da escola; depois, as outras quatro.

Artesanato de um filme em película

Mas, era preciso dinheiro para a produção, e dinheiro não havia. Seguindo os passos do motivador “Deu pra Ti, Anos 70”, teve-se, então, a idéia de se fazer um adesivo alusivo a São Thomé e vendê-lo na cidade. Uma frase, um roteiro: “Sam Thomé — Sobre a Pedra, o Homem”, extraída como o itacolomito do fundo do coração de Berenice de Lima, paginada por um sol vermelho num céu de prata, e produzidos em arte final por João Moreira, que teve a ideia do sol, do céu e das cores. Estava feito. Este adesivo, que inundou Belo Horizonte, seus automóveis, e é lembrado até os dias de hoje, foi que bancou o resto da viagem. Pelo menos, até serem necessários mais fundos ao trabalho de pós-produção.

Quem tem como referência na vida apenas as tecnologias digitais, quânticas na sua essência, sequer imagina o que seja o artesanato de um filme em película. Captar a luz e, com ela, sensibilizar um fotograma e outro e outro mais, nos limites do foco e da ação, fazendo o mesmo com o som, mas em outro equipamento; depois, revelar o material fotossensível, guardando-se o negativo e fazendo a sua edição numa cópia, a que dá-se o nome de copião, editando-se também o som, em sincronia com as imagens; voltar ao laboratório, produzir um negativo de áudio e editar o negativo das imagens, segundo o copião, e depois uni-los num terceiro produto, requer cuidados extremos nas suas etapas e muito dinheiro.

Nesse caso particular, os recursos para a pós-produção só foram possíveis pelo concurso, como apoiadora, da Secretaria de Ensino Superior do MEC – SESU, que investiu na ideia. Mas, não aleatoriamente, senão num trabalho de convencimento que envolveu a própria Reitoria da PUC Minas, na pessoa do reitor de então, Pe. Geraldo Magela Teixeira, já falecido. Afinal, se a razão de ser de uma Universidade era, como deveria ser sempre, o Ensino, a Pesquisa e a Extensão, ou seja, a transmissão do conhecimento que se tem de algo, a procura pela produção de um conhecimento novo e a relação desses conhecimentos com as demandas da sociedade, tal projeto satisfazia, plenamente, aquelas instâncias todas, por mais que para aquele grupo de alunos de comunicação, hoje profissionais da área, tenha sido, sobretudo, um aprendizado.

‘Cult movie’

Lançado em São Thomé das Letras, em 1984, e visto uma única vez, o filme tornou-se uma peça cult, uma referência na memória de seus quase sete mil habitantes, que ainda hoje sobrevivem da pedra. Seu título, no entanto, mais do que o próprio filme, tornou-se um dístico local e ganhou o mundo, seguindo na bagagem de seus muitos frequentadores e visitantes, dos jovens e místicos que andam por lá e por outros cantos, vindos de todos os rincões do mundo.

A cidade continua inteira, alterosa. O documentário, por sua vez, pode ser acessado com facilidade no sítio do Youtube, bastando digitar-se o mantra: “Sam Thomé – Sobre a Pedra, o Homem”. Vale conferir ambos.

São Thomé e as suas lendas

Na verdade, não se sabe ao certo se existiu verdadeiramente um apóstolo chamado Tomé ou Tomas, uma vez que, traduzido do aramaico, a palavra se refere a “gêmeo”, e se encontra, no evangelho apócrifo de Tomé, justaposto ao nome “Judas”, sendo aquele que, citado nos evangelhos canônicos, duvidara da ressurreição de Jesus. De qualquer maneira, o apóstolo que era gêmeo, proclamando “a boa nova”, teria viajado pelo oriente e chegado à Índia, onde morreu. A tradição, como “prova” das passagens de São Tomé pelo mundo, lhe atribui formas e marcas em pedras que se assemelham a pegadas.

Sumé

Também conhecido como Zumé, Pay Sumé, entre outras referências, é o nome de um antigo herói mitológico dos povos tupis do Brasil, que lhe atribuíam tê-los ensinado sobre o fogo, a agricultura e a organização social. Um herói civilizador. Sua descrição variava de tribo para tribo. O colonizador, também um agente “civilizador”, viu nela o apóstolo Tomé, perscrutando na paisagem brasileira as mesmas formas que o identificavam nas Índias Orientais, as mesmas pegadas impressas na pedra, no sentido da dominação daqueles povos.

Chico Taquara

Descrito como um homem corpulento, alto, de olhos claros, barba e cabelos compridos, nos quais pendurava miçangas feitas dos bicos de garrafas, Chico Taquara viveu e desapareceu nas cercanias de São Thomé das Letras, tendo habitado, assim como João Antão, uma toca que lhe conserva o nome. Era um homem misterioso, tido por curandeiro, que quando queria evitar encontrar-se com alguém, simplesmente desaparecia para ressurgir mais adiante. Há quem diga que era tal qual o próprio São Tomé, esculpido em Carrara.

Caminho Peabiru

Constituía-se, o Peabiru, de um antigo caminho Inca, que ligava os Andes ao Oceano Atlântico, sendo percorrido pelos índios brasileiros da época do descobrimento. A picada principal cortava o atual estado do Paraná, mas tinha inúmeros ramais. Um deles, pelo que se conta, ia dar na Serra de São Thomé. Do mesmo modo, se diz que existe um caminho subterrâneo fazendo o mesmo itinerário entre São Thomé das Letras, no Brasil, e Cuzco, no Peru… O porquê de dois caminhos, ninguém nunca soube ou estranha a ocorrência.


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