Um queijo, uma cachaça e algumas doses de fé

Por Rita de Podestá

Em terra de fé, feriado sempre é santo. Mas comum mesmo é quem encara os dias festivos religiosos como oportunidades de emendar a sexta-feira. Desculpa para a saída escapulida à alguma cidade do interior. Ou oportunidade geralmente mal aproveitada de desatrasar o trabalho procrastinado. A santidade que transforma o dia útil em não útil (apesar de nos fornecer inúmeras utilidades), acaba passando desapercebida quando é precário o exercício da religião.

Na Semana Santa que se passou, resolvi reconsiderar minha relação com aqueles que me permitem o descanso em pleno não fim de semana. Até porque, a semana é santa, o motivo é nobre e páscoa não é só chocolate. Aliás, misturar coelho, chocolate e bacalhau é um dos exemplos mais primorosos da criativa mente humana.

Reconsiderei. Pensei. Uma mineira que nunca viu uma representação da sexta-feira da paixão não pode sair orgulhosamente gabando-se do título. Comer muito queijo não assegura a ninguém a tutela de mineirês. Local de nascimento só te dá a chance de pleitear a posição. Para renovar minha mineiridade não escolhi interior famoso, mas o que já frequento em razão de hospedagem familiar. Falo de Suzana, distrito de Brumadinho. Vila mansa, de rua principal que aparece e outras agregadas que se escondem. Vilarejo de beleza agradável. Encoberto pela Serra da Moeda — aos seus pés, como se louvasse a grande protetora.

Quem chega dia de semana quase não encontra comércio útil. Olha que nem é feriado. Na rua Hum passa um, dois, no máximo três pessoas por vez. As quais irão te cumprimentar, mesmo sem te conhecer. Não se economizam saudações. Se em um dia houver cinco esbarros, serão cinco cumprimentos. Opa! Tá bão? Diá! Tarde! Noite. E não há pressa no falar, por ali o tempo interior parece que rasteja. Para comer só um bar se prontifica a funcionar. Tem prato feito com carne ou a moqueca com peixe de rio distante. A cerveja é a mais barata por garantia da patroa. Mas se é dia de sair de carro, dispense a cachaça e garanta a gasolina. A dona larga o feijão para encher galão de cinco, dez ou vinte litros. Um senhor pediu cinco, reclamando aos que almoçavam a malvada com torresmo que em terra de morro, fusquinha bebe demais. Já o mercado também fica aberto. Nas prateleiras o que se vê é o que tem. E o que tem é o que se precisa. Por ali não há ovo de páscoa gourmet.

Vamos à experiência. Sexta a noite é dia de encenação. Morre Cristo e a Igreja ensina o porquê. Levei meu banco e a jaqueta. O frio anuncia que esse ano o inverno vem. O ponto de ônibus estava lotado, mesmo sabendo que transporte nenhum passaria por ali. De frente para a igreja, o ponto virou camarote dos mais disputados. E pouco a pouco, respeitando a não velocidade da vila, a pequena multidão de Suzana chegava desapressada. Meninas de cabelos escovados. Meninos cheio de olhares já reservados. Crianças em clima de recreio noturno. E senhoras desejosas de se manterem em dia com os dias santos. Oiá que ainda falta quinze minutos, dá tempo pra uma rezadinha!

A fé era veste comum. Nessa noite todos eram cristãos, até quem frequenta a igreja que funciona onde há pouco tempo tinha mesmo é padaria. Em noite de Semana Santa todos são iguais perante a reza. Por ali, todos eram moradores de Suzana.

Começada a encenação, alguns cochichos. Parece que Jesus namora a cantora. Maria faz papel de Caridade, enquanto Joana é quem representa Maria. A Esperança entra por último, tarda mas chega em tempos de se apresentar. Já Abrãao é ovacionado pelo grito entusiasmado da sobrinha: olha mãe, é o tio! Em cada ator um reconhecimento. Em cada ato um ensinamento. A lua, mesmo em dia de sair cheia, respeitou a iluminação cênica. Ficou escondida, como se não quisesse ofuscar a esperada ocasião. Teve velho e novo testamento. Teve sermão de padre em linguagem teatral. Teve coro engajado e plateia que era só interesse.

Na cena final, Jesus é retirado da cruz para ser enterrado. O silêncio era de respeito. Mas na procissão do enterro a hora era de soltar prosa até então solenemente segurada. Uma senhora reclama com a cumadre enquanto acendem a vela: já tá na hora da minha cervejinha. Um senhor diz que vai ao casamento da filha do Seu Zé à cavalo. Não gosto de dirigir carro não, só sei andar selado. Enquanto isso, outra mulher aconselha a amiga a deixar fulana implorar de joelhos. Veja lá menina, não perdoa não. Com essa aí não se gasta lábia! Respeitemos. Há de se entender que na religião, teoria e prática as vezes se desentendem. Afinal, somos errantes compulsivos.

Duas filas paralelas separavam a multidão para que pudesse entre elas caminhar os guardiões. Um deles, gesticulava agressivo seu cajado a fim de fazer bem o papel que lhe cabia. Mas bastava um cumprimento para ser só sorriso e papo solto. E amanhã? Almoça lá no bar? Finda a procissão, agradecimentos na igreja e hora de se recolher. Alguns com seus banquinhos, outros com suas fantasias.

A lua sai e em poucos minutos na rua Hum só a noite encena. O nada acontecer convida à reflexão. Parece mesmo que religião é muito mais do que reza. Dia santo é algo para além de feriado. E ser mineiro é tanta coisa que não se explica. Em cada vilarejo de poucas ruas há quem faça o que pode para manter vivo o que se tem de valor. Nem que isso implique em reviver a cada ano o que já é estória sabida.

Pois fé que fica parada de nada serve. Reza solitária não tem força de procissão conjunta. Assistir todo ano a mesma peça é encontrar não só a renovação do que se crê. É uma chance de sentir-se parte. De se reconhecer no outro que o representa enquanto se apresenta. De ser mineiro pela tradição de manter viva a tradição em si. Eu que só conto as histórias da minha terra, encontrei quem vive a história para que ela não se perca. Suzana não precisa da novidade, do diferente. Ela precisa apenas de continuar sendo.

Como intrusa fui bem recebida. Saí do pequeno distrito digerindo esse novo, que ingênua acreditei ser só mais do mesmo. Pensei nos incontáveis vilarejos que sobrevivem insólitos. São milhares de Cristos, de Centuriões, de tios fantasiados de Abrãao. Milhares de Esperanças, Marias e senhoras que gostam da reza, mas também da conversa solta. E sabe-se lá quantos jovens que procuram uma moça ou um moço bão.

No domingo seguinte é dia de abrir o restaurante ao lado da igreja. O garçom já sem vestes de centurião, conta ter levado chibatada no lugar de Jesus. Acidentes teatrais. Ao me despedir, duas pessoas esperavam no ponto já desfeito do seu papel de camarote. Depois de ansiar pelo nascimento de Jesus, era hora de esperar o ônibus passar. Emendei o feriado e remendei a fé. Garanti o queijo comprado, o ovo caipira e saí de mineiridade renovada.

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Categorias:
Crônica de viagem

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