Vale do Jequitinhonha

Era preciso franzir a testa e quase fechar os olhos para suportar o sol, que chegava forte. O calor era fruto de um dia quente com poucas nuvens. No fundo, um dia como tantos outros em uma cidade do Vale do Jequitinhonha.

Texto: Juliana Afonso
Fotos: Daniel Mansur*

Eu andava pelas ruas daquela cidade, apreciando suas feições singelas. A começar pelo próprio chão. Estava em uma das poucas vias de cimento, sem tinta e sem muitas placas. Todas as outras eram feitas de pedra ou de terra, aonde rua e calçada pareciam iguais: o mesmo material, a mesma cor marrom, ambas bastante precárias. Eram separadas por um meio fio de poucos centímetros.

As casas dos moradores pareciam dar continuidade ao chão, já que o sopé das construções também se pintava de marrom, seja por causa do vento que jogava poeira nas paredes, seja por causa da água que fazia a terra grudar. Mas era só olhar um pouco mais pra cima que apareciam as cores. Azul, branco, rosa, verde ou amarelo. Algumas casas, possivelmente as que tinham as donas mais vaidosas, tinham duas ou até três cores ao mesmo tempo. As portas e janelas, sempre abertas, mostravam mesmo do lado de fora que lá dentro as paredes também tinham outras cores.

A curiosidade me fazia arredar os pés, espichar o pescoço e chegar cada vez mais perto. Foi quando ela apareceu na janela e me pegou de surpresa. Não me recordo seu nome, mas me lembro do seu olhar desconfiado. Fiquei sem graça, sorri e disse estar ali de passagem. Ela sorriu de volta. Era uma senhora de poucas palavras, mas de um enorme coração. Me perguntou de onde eu era e o que estava fazendo por aquelas bandas. “Conhecendo”, respondi. Me disse para entrar.

Simplicidade foi a palavra que me veio a cabeça. Só não sabia se no Jequitinhonha a simplicidades era uma questão de escolha ou de desconhecimento. Fato é que a residência daquela senhora me pareceu um retrato fiel não só de toda a comunidade ali perto como também da vida no vale.

A casa tinha sala, dois quartos e cozinha. O banheiro era do lado de fora. Os móveis eram poucos e por isso mesmo bastante utilizados. As prateleiras aonde ficavam os copos também eram usadas para colocar as frutas do dia. O armário tinha duas portas para roupas e toalhas e uma para a pequena televisão, algumas imagens de santo e um porta retrato do neto, quando este acabara de nascer. Até o sofá, aonde as visitas se sentavam, fazia as vezes de cama para os gatos.

E nem só os gatos que lhe faziam companhia. Seu marido estava em casa, sentado na cadeira perto da janela, observando o movimento da rua. Além disso, uma das paredes da sala deixava evidente as fotos da família. Irmãos, sobrinhos, filhos e netos que deviam aparecer com frequência para visitá-la. O mundo daquela senhora, afinal, não era tão parado quanto supunha ou tão infeliz quanto imaginava.

Agradeci a cordialidade e dei tchau. Saí para ver uma nova Jequitinhonha, despida de preconceitos. As casas ficaram cada vez mais distantes uma da outra e cada vez mais interessantes. Pensava que história cada uma dessas residências guardava. Quantos choros, quantos sorrisos, quantos momentos. E então eu percebi que a casa e os objetos eram só mais uma forma que eu tinha de conhecer as pessoas, as verdadeiras jóias daquele lugar.

Foi assim com o artesão que fabricava utensílios de couro, como chapéus e capas para facões. Como a luz era pouca, chegava bem perto da porta para ver com mais facilidade o objeto que estava manuseando. Fazia tudo com calma e concentração. Sua arte era caprichosa. Era capaz de ficar ali por horas a fio sem piscar os olhos. Só levantava a cabeça para um cliente, e mesmo assim, se este o chamasse.

O mesmo se passava com o dono da selaria. O sol que entrava pela janela o ajudava a construir a sela artesanal, esse objeto cheio de detalhes. Além do couro ele precisava conhecer a tensão das cordas e as artimanhas do metal se quisesse vender todo o estoque.

Mas a verdade é que eu não via pressa naqueles homem, sequer para vender suas peças. Estava claro que precisavam do dinheiro, mas pareciam fazer aquilo com paixão. Não tinham a intenção de enriquecer ou serem famosos, só queriam ser reconhecidos pelo ofício que desempenhavam há tanto tempo. Por isso a calma, a dedicação, o empenho. Esses eram os ingredientes. A excelência do material ali fazia parte do modo de preparo.

E pensando na arte dos homens do vale, continuei andando sem rumo. O pisar no chão fazia a poeira subir e sujar a barra da calça. Estava como as construções do Jequitinhonha, com o “sopé” da minha roupa pintada de marrom. Ri. Até gostava da ideia. Daquela forma eu me sentia menos intruso e mais pertencente àquela região que apesar de tão perto de mim, parecia ter saído da literatura de cordel.

Uma canção que vinha de longe interrompeu meus pensamentos. Segui a música e cheguei a uma casa de paredes brancas, janelas de madeira e penduricalhos coloridos pendurados no telhado. Era a residência mais bonita que eu vira até então, mesmo sem riquezas ou frescuras. Ninguém na porta, ninguém nas janelas. A cerca semicerrada me pareceu um convite. Talvez não fosse, mas eu entrei do mesmo jeito.

No espaço aberto ecoava o canto não de uma, mas de três mulheres de meia idade que faziam artesanato. O típico artesanato do vale do Jequitinhonha. No quintal daquela casa estavam panelas de metal, flores de cerâmica e dezenas de mulheres de barro, de todos os tamanhos, cores e modelos.

Elas eram como os homens daquela cidade: calmas, dedicadas e empenhadas. Com a diferença que conseguiam distribuir a concentração em duas ou três atividades. Enquanto manuseavam o barro conversavam comigo. Falavam sobre a própria arte e como ela era passada de geração a geração, sempre assim, da mais velha para as mais novas. Nada de manuais ou receitas de como fazer. O verdadeiro artesanato é uma questão de tentativa e erro, como a vida.

As senhoras também não tinham muito dinheiro e torciam sempre para que mais e mais turistas chegassem à cidade. E então esbanjavam simpatia. Mas nem precisavam fazer muito esforço para isso acontecer. Se despediram de mim com o mesmo sorriso que me receberam.

O dia também sorria para mim. Ele estava lindamente ensolarado e passava devagar. Segui por um caminho que parecia distante de tudo. Nada de vendas, lojas ou casas. Era a primeira vez que a natureza dava o ar da graça de forma mais forte. Ao contrário do que mostram todos os livros de geografia, a vegetação estava verde e frondosa. Deduzi que a última chuva a passar por aquelas bandas era recente.

De toda forma, o local ainda não parecia totalmente selvagem. Havia arame cercando as propriedades e marcas no chão. Rodas, chinelos, pegadas de cachorros e cavalos. Tudo fez sentido quando cruzei o caminho com um morador em cima de uma carroça levada por um cavalo branco. Passou rápido por mim levantando a areia.

Demorou uns 10 minutos para a poeira baixar e então escutei passos apertados. Não sei porque tive pensamentos medrosos e resolvi não olhar para trás. Como andava devagar, me ultrapassaram com facilidade. Era uma mulher humilde que carregava panelas na cabeça. Eu não sabia para onde estava indo, mas com certeza iria segui-la.

Eu já a tinha perdido de vista quando cheguei na beira do rio. O céu ainda estava azul e a água — ao contrário de tantas — ainda estava limpa e transparente. As senhoras se apoiavam nas pedras para lavar roupas e utensílios domésticos, que eram colocadas de novo nas mesmas pedras para secar ao sol. As lavadeiras e o rio. Uma imagem a perder de vista.

O dia foi caindo e o sol abaixando. Eu apreciava aquelas mulheres, de ares tão humildes e gestos tão certeiros. Foi quando vi uma criança de rosto travesso se divertindo sozinha nas águas do rio. Ela saltava e nadava sem parar, rindo sozinha. Porque não? Pulei na água sem hesitar. Voltei para as pedras me secar e percebi que a barra da minha calça não estava mais marrom. Feliz, era hora de ir embora.

*Produtora executiva: Ludmila Araújo


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