Makely Ka e sua jornada às raízes sertanejas

Makely Ka em sua jornada pelas raízes sertanejas

Arte mineira

Makely Ka e sua jornada às raízes sertanejas

Em busca da própria identidade musical, o músico Makely Ka percorreu o sertão mineiro de bicicleta — em uma jornada de três meses — e descobriu muito mais do que melodias.

Por Juliana Afonso

Plantas rasteiras, chão de areia, carros de boi e casas de pau a pique marcam o imaginário sobre o sertão mineiro. Porém, esses elementos não são as únicas referências da região sertaneja. Existem outras identidades. Perto da vegetação rasteira há árvores frondosas; ao lado do terreno arenoso, existem grandes lagoas de água doce. No sertão, também convivem pobreza e riqueza; alegria e tristeza; falta e fartura. No sertão, os contrastes fazem parte do todo.

Essa foi uma das maiores lições aprendidas pelo cantor e compositor Makely Ka, que embarcou em uma viagem de três meses pelo sertão de Minas Gerais com o objetivo aprimorar a sua produção musical, que sempre esteve fora das classificações comuns. “Minha música tem elementos do sertão nordestino e da escola harmônica mineira, pois nasci no Piauí e fui criado no interior de Minas”, conta.

A aventura começou em julho de 2012. Foram 1.680 quilômetros no comando de uma bicicleta. No caminho, paisagens deslumbrantes, encontros com comunidades tradicionais, um repertório nada convencional de histórias e registros de uma cultura rica e resistente. O resultado dessa experiência está no disco Cavalo Motor, lançado em maio de 2014. “Esse disco é uma confirmação de todo meu trabalho, das minhas influências”, diz.

Trajeto literário

Traçar um roteiro capaz de representar o vasto universo sertanejo exige tato e responsabilidade. Para fazer isso, Makely Ka se inspirou no trajeto feito pelos personagens do livro Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, um dos maiores clássicos da literatura brasileira. A leitura do livro acompanhou um estudo minucioso da geografia local. “Descobri que ele foi escrito em cima de mapas. O percurso dos personagens, as distâncias que Riobaldo e Diadorim percorrem, ou mesmo o bando de jagunços, correspondem a distâncias reais. O tempo que eles levam para fazer a travessia de uma cidade para a outra é o tempo real”, conta, surpreso. Alguns locais foram criados, outros suprimidos, e nomes foram inventados. Ainda assim, Guimarães Rosa se manteve fiel à geografia de Minas Gerais.

Makely Ka fez questão de incluir em seu roteiro locais que foram importantes na história dos personagens de Grande Sertão: Veredas. Por isso é que a viagem começou em Sete Lagoas, cidade mais ao sul ao longo da trama, e terminou em Paredão de Minas, onde acontece a batalha final entre os bandos de jagunços. No meio do caminho, ele passou por Barra do Rio de Janeiro, onde Riobaldo encontrou Diadorim pela primeira vez; Barra do Guaicuí, local em que Riobaldo finalmente admite seu amor por Diadorim; Fazenda dos Tucanos, onde os protagonistas teriam sido encurralados pela tropa do Hermógenes, além de outros pontos importantes.

Sobre a escolha em percorrer todo esse trajeto de bicicleta, ele esclarece: “eu queria estar em contato com o meio ambiente de uma forma mais orgânica; sentir a poeira, o sol, o vento, e também queria estar mais próximo das pessoas. A bicicleta era o veículo mais adequado a esses propósitos”. Fazer o trajeto com a magrela também foi uma opção ecológica, para não gerar nenhum tipo de descarga no ambiente. Ele ainda aproveitou os seus conhecimentos sobre energia e construiu um sistema de geração de energia acoplado à bicicleta: seis horas de pedalada eram suficientes para gerar quatro horas de autonomia para carregar a câmera fotográfica, o computador e o GPS. “Levei esses equipamentos para registrar a viagem. Eu publicava as trilhas no Google Earth na medida em que pedalava e as pessoas acompanhavam o percurso no meu site”, conta.

Experiências sertanejas

O caminho percorrido por Makely Ka teve altos e baixos. Dentre as lembranças mais prazerosas estão as chegadas nas cidades e povoados. “Num primeiro momento todos têm receio: eu era o forasteiro. Mas por estar de bicicleta, as pessoas entendiam a minha situação de relativa fragilidade e estabeleciam uma relação de empatia”, conta. Makely logo era convidado para entrar nas casas das pessoas e tomar um “cafezinho”, sinal de que havia sido bem recebido.

Em algumas cidades chegaram a disputar a sua atenção. O compositor conta que ao chegar em Barro Branco, comunidade de Lassance, aproximou-se de um ponto comercial e pediu a indicação de um local para que pudesse passar a noite.   Logo chegou um senhor e lhe convidou para  tomar um café. Depois de algumas xícaras e um bocado de prosa, ele deixou suas coisas nessa casa comercial para buscar o local que tinham indicado e descobriu que os donos já tinham preparado tudo para que ele pudesse dormir. “Todavia, o senhor que eu tinha conhecido primeiro apareceu e disse: vamos lá pra casa que você vai dormir é lá”, conta, rindo, apesar da situação um pouco constrangedora.

Também foi por indicação que Makely Ka chegou a uma pousada “em um vilarejo afastado da civilização”. Depois de jantar, uma das filhas do casal teve uma crise de asma. A mãe foi para a cozinha fazer um chá; o pai ficou ao lado da menina, tentando acalmá-la e algumas senhoras chegaram para rezar. Para chegar a Chapada Gaúcha, cidade mais próxima, seria preciso atravessar 80 quilômetros em uma região onde as dunas de areia são tão altas que os veículos quase não conseguem passar. A caminhonete do homem que costuma fazer a travessia não estava na estava na cidade. “Aquela gente não sabia o que fazer e foi rezar com eles”, lembra. A menina melhorou. “Nessas regiões tudo é muito precário. Aí você começa a entender os mecanismos da fé. Não é uma coisa gratuita, é no que as pessoas podem se agarrar, não tem outra”, diz.

Melodia mista

Makely Ka conseguiu trazer o sertão para sua música de uma forma realmente emocionante. Conversas, rezas, violas, poesias e até barulhos soltos no ar — como o canto dos pássaros e o encontro entre rios — são sons usados no disco. “Hoje em dia o impulso é urbano e as conexões vêm de outros lugares, mas a música autóctone não dissocia a música da vida.” Ele cita as músicas de trabalho, das lavadeiras, dos agricultores, as músicas de rezas e até mesmo as músicas dos funerais. Todas elas fazem parte do cotidiano dos moradores desses locais.

Durante o processo de produção, Makely  Ka encontrou uma relação direta entre a música a geografia do sertão. Para o cantor, a música em Minas é mais introspectiva, mais contemplativa, assim como o próprio morador do Cerrado. “Tem a ver com a amplitude da paisagem. Eu acho até que a harmonia mineira emula as árvores retorcidas do Cerrado. Já a Caatinga evoca o ritmo. Ali você anda fazendo ritmo, como o som que surge quando se pisa em galhos secos”, explica. E é nesse espaço, entre a harmonia torta e a melodia rítmica, entre o Cerrado e a Caatinga, que se encontra a música de Makely Ka.

Esse espaço intermediário tem um nome: Carrasco. “É como eles chamam a região que fica na divisa de Bahia com Minas Gerais. É a simbiose dos dois biomas. De alguma forma, eu identifiquei naquele local a minha própria música”, conta. Uma das faixas do álbum Cavalo Motor leva o título de Carrasco. A letra foi escrita ao longo da viagem, a partir das anotações que ele fazia em um caderno.

Envolvimento político

Da viagem ficou a música e uma interação com a natureza de forma mais explícita. Desde que voltou do sertão, Makely tem se envolvido mais profundamente com as questões ambientais. O incentivo veio da sua própria percepção. “A paisagem está cada vez mais diferente do que se lê no livro de Guimarães Rosa. A mudança é dramática”, opina. Os movimentos com os quais o cantor mais se envolveu relacionam-se com as questões ligadas aos  impactos causados pela construção de barragens e também pela expansão da fronteira agrícola.

Outra questão levantada pelo compositor é relacionada à potencialidade turística do sertão: “é gigante”, decreta. Ele argumenta que a obra-prima Grande Sertão: Veredas, conhecida internacionalmente e traduzida para diversas línguas, eternizou a região, ainda que muitas pessoas, levadas pelas fantásticas aventuras de Riobaldo e Diadorim, sequer saibam que esse cenário é real. “Assim como muitas pessoas viajam para conhecer a Dublin de James Joyce, outras tantas viriam conhecer o sertão de Guimarães Rosa”, aposta.

De fato, a paisagem sertaneja é mesmo estonteante. Os lindos buritis que emolduram as veredas do sertão têm mais de 500 anos de vida. As árvores de troncos retorcidos que decoram os caminhos secos do Cerrado mineiro tem raízes que chegam ao dobro do tamanho de sua altura. Essas são algumas curiosidades de um dos biomas mais antigos do mundo e que, infelizmente, não é preservado como deveria ser. “O Cerrado é desconsiderado como floresta com potencial de preservação”, argumenta o compositor que hoje, com a sua música, também luta pela conservação do bioma que representa a sua própria identidade.

“Entre o Cerrado e a Caatinga
Risca fogo usco-fusco
Esse céu que acende e cilibina
Tanto azul tudo ilumina” –
CARRASCO

“Sei que a vida é um rio caudaloso
E a navegação uma aventura
Uns vivendo com a corda no pescoço
Outros na corda bamba da Pendura
Não preciso ir ao fundo desse poço
posso imaginar sua fundura.”
CÓDIGO ABERTO

“Diz o ditado que o apressado como cru
E quem não come como é classificado?
Quando não sobra nem a raspa do angu
Morrer de fome ainda não foi interditado.”
FIO DESENCAPADO

“No vão da estrada aberta
Um sol ardendo em brasas
Estou vindo de volta
Sem direção de casa.”
SEM DIREÇÃO DE CASA

“A vida é o sumo do absurdo
Tupo pode, basta duvidar
Os sinais trocados num segundo
E o que era menos vem somar.”
RODA DA FORTUNA

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