Berenice Menegale

Música, memória e educação

Diretora Executiva da Fundação de Educação Artística, a pianista Berenice Menegale é dona de uma sólida formação musical com estudos no Brasil, na França, Suíça e Áustria onde diplomou-se pela Academia de Música de Viena. Além da brilhante carreira, ela é reconhecida pelo incansável trabalho na FEA e também como produtora cultural. Nesta entrevista, Berenice fala sobre os 50 anos da Fundação e pede apoio para que a FEA, em sérias dificuldades de sobrevivência, possa continuar servindo à sociedade e até ampliar as suas atividades.

Por Cézar Félix
Fotos Rogério Alves Dias

— Como a senhora resume o meio século de existência da Fundação de Educação Artística?

Vamos completar 50 anos oficialmente em 8 de maio de 2013, mas, na verdade, em novembro de 1962, já havia um grupo que tomava providências para a criação de uma boa e atualizada escola de música em Belo Horizonte — que contribuísse para o desenvolvimento cultural e artístico da cidade. Desse grupo fundador, estamos vivos: Maria da Conceição Rezende, Maria Clara Paes Leme, Eduardo Hazan e eu. Para uma entidade cultural e educacional sem fins lucrativos, voltada para a música e sobrevivendo sem nenhuma subvenção oficial, totalmente autônoma, meio século de existência significa muito, especialmente no Brasil. Provavelmente é um caso muito raro, senão o único com essas características. A luta pela sobrevivência é árdua. Embora tenhamos uma bela sede, que impressiona todos os que nos visitam, eu reafirmo: a luta cotidiana, nestas cinco décadas, para manter a Fundação de Educação Artística em pleno funcionamento nunca deixou de ser pesada. Esta sede é fruto de um contrato de incorporação efetivado com uma grande construtora. Nós tínhamos aqui um sobrado adquirido em 1958, na base da colaboração de muita gente, inclusive dos que trabalharam durante dois anos doando seus salários. A construtora M. Martins — hoje Patrimar — comprou a casa, construiu um edifício e o ergueu junto com a nossa sede, inaugurada em 1997, que também passou a abrigar desde 1999 a nossa sala de concertos, a Sala Sérgio Magnani. Sem dúvida, temos instalações muito boas, que oferecem aspecto de prosperidade. Porém, a vida da Fundação é difícil. Perdoe-me a insistência, mas trata-se de uma questão de sobrevivência. Esta instituição não pode morrer, pois ainda tem muito a oferecer à sociedade mineira. O nosso ambiente ainda necessita desta Fundação. Nestes 50 anos, a cidade evoluiu muito culturalmente — e é bem reconhecido o papel decisivo da Fundação nessa evolução. Belo Horizonte oferece realizações importantíssimas, inclusive na área da música, mas esta casa tem novos caminhos únicos, exclusivas. O fato de ser autônoma, permite que a FEA se mantenha sempre atualizada; ela sempre se recicla, está sempre atenta às novas demandas, à evolução cultural, sempre com muita representatividade. A experiência em se renovar constantemente é para nós mais natural do que para uma instituição oficial. Mas, mesmo assim, por falta de recursos, ainda temos muitos projetos que não se completaram. É urgente a necessidade de ampliar a nossa equipe operacional. Mas não ficamos parados. Com o fundamental apoio do prof. Paulo Haddad, construímos um planejamento estratégico que prevê novos caminhos para a FEA, e que terá sua implementação intensificada em 2013. Outra importante característica da Fundação é o fato de aceitar o aluno como ele é, de qualquer faixa etária, a partir dos quatro anos. Nós podemos atendê-lo dentro de uma grande disponibilidade de horários, não exigimos uma formação musical anterior e oferecemos cursos e treinamentos em todos os níveis.

— Qual o é perfil do aluno da FEA?

Os alunos que nos procuram encontram a oferta de uma formação musical sólida, atualizada, que valoriza a criatividade e que não impõe caminhos. Em nossas turmas de jovens e adultos convivem estudantes que se inclinam para a música clássica e para a música popular. Muitas vezes praticam as duas, em razão das características de abertura e autonomia da FEA. Temos muitos estudantes que vivem uma situação econômica precária. Dentro de nossas possibilidades (que dependem de patrocinadores), os alunos de baixa renda contam com gratuidade no ensino, são bolsistas. Pretendemos que não seja pela falta de condições econômicas que eles deixarão de estudar na FEA. Queremos ampliar nosso programa de bolsas devido à grande demanda existente. Precisamos de pessoas ou de empresas que nos ajudem a financiar essas bolsas, embora o déficit da Fundação não seja exclusivamente em função dos bolsistas — mas é claro que isso também pesa no orçamento. Precisamos de muita ajuda, tenho a obrigação de dizer. Não posso apenas falar da imensa contribuição cultural, dos valores e belezas da Fundação. Se queremos que ela continue a existir, precisamos de mais ajuda, de colaborações. Temos parcerias muito interessantes e um grupo de colaboradores fieis. Você pode imaginar quantas pessoas — entre alunos, professores, artistas e público — já passaram pela Fundação em meio século? Precisamos fazer chegar esse apelo à sociedade. Ao chegar aos 50 anos de existência, é importante que as pessoas que valorizam a cultura saibam qual é a nossa realidade, que precisamos de apoio para continuar, para crescer e para ampliar o alcance de nossa atuação.

— A Fundação é beneficiada por projetos de Leis de Incentivo à Cultura, por exemplo?

Sim, a Fundação é beneficiada pelas leis de incentivo à cultura. É a nossa maneira de subsistir! É o que tem permitido a nossa continuidade. Esses recursos são utilizados basicamente para pagar despesas de manutenção e aulas de alunos que têm gratuidade. Estamos com muita esperança de, em 2013, recebermos grande número de adesões que possibilitem a realização de nossos projetos artístico-culturais, de ampliação do Programa de Bolsas e de
complementação de nossa infraestrutura. Nós temos, por exemplo, as “Manhãs Musicais”, aos domingos, uma programação que começou junto com a Fundação, em 1963. Realizamos semestralmente as Semanas de Música de Câmara (em março próximo faremos a 18º edição!) com três renomados professores que vêm da Europa por seus próprios meios. Uma ajuda do BDMG Cultural paga a hospedagem deles. A fidelidade desses professores é baseada no entusiasmo pelo trabalho da FEA, que se abre para oferecer os cursos dados nessas Semanas aos jovens instrumentistas. Poderemos criar outros programas que, como esse, criem oportunidades para os artistas mineiros e atendam à demanda do público. A Fundação tem em sua história grandes realizações culturais e tem, também, muitos planos importantes para o marcar 2013, ano do cinquentenário.


O fato de ser autônoma, permite que a FEA se mantenha sempre atualizada; ela sempre se recicla, está sempre atenta às novas demandas, à evolução cultural, sempre busca atuar onde se faz necessária.


— Como a senhora explica esse distanciamento do empresariado e até mesmo do mundo oficial em relação a projetos tão importantes como os da FEA?

Nós temos alguns patrocinadores fieis e a eles somos muito gratos, pois sem essa ajuda não existiríamos. É fato inegável que o potencial da Fundação é muito maior do que temos condições de realizar no momento. Nossa programação cultural, insisto, poderia ser muito mais extensa se tivéssemos apoio frequente, e muito mais empregos seriam gerados. É difícil explicar porque não temos mais colaboradores, pois o público responde muito bem ao que realizamos. Temos inegável reconhecimento, mas talvez nós precisemos ampliar nossa comunicação com a sociedade. Nosso Presidente, professor Éderson Bustamante, aposta na campanha que lidera pela doação de pessoas físicas aos projetos da FEA, com base na renúncia fiscal. No ano passado, tivemos uma primeira e bem sucedida experiência.

— A senhora diria que existe um diferencial para se revelar talentos na FEA?

Na verdade, sempre há aluno talentoso! Talentos não faltam. Talentos para a música estão por aí em todos os ambientes e em todos meios econômicos e sociais. O que é preciso é oferecer oportunidades. Existe uma realidade na FEA que gosto de ressaltar: Quando os nossos alunos alcançam o nível médio musical, estão na idade de ir fazer o vestibular e já construíram, na música, uma base sólida para isso. Outros não se interessam pelo caminho universitário e começam a se profissionalizar de diversas maneiras, basicamente com a música popular. São os que ficam muito mais tempo na Fundação. Muitos alunos permanecem, outros vão e voltam e alguns já estão na Universidade, mas ainda frequentam as nossas aulas. Esse dinamismo é um diferencial muito importante da FEA. Há sempre algo para aprender aqui, pois não seguimos um programa oficial. Muito significativo é constatar que, dos jovens alunos que se destacam, os nossos bolsistas são os melhores. Isso tem uma explicação lógica. Os alunos beneficiados pela gratuidade aparecem espontaneamente ou são indicados por uma professora da escola regular que observa aquelas vocações. Eles querem ser músicos, eles surgem da periferia para se tornarem músicos. É o primeiro sinal da vocação. Quando já dominam os seus instrumentos, eles montam bandas, começam a tocar ritmos populares, tocam na noite e ganham o seu sustento com a música. Os alunos que optam pela música clássica, partem para participar de concursos e buscam opções oferecidas pelo mercado, como tocar em eventos, em casamentos e em festas. Os estudantes das classes mais favorecidas, chegando a época da opção, do vestibular, na maior parte dos casos optam por outra profissão. Os bolsistas geralmente seguem a sua escolha inicial e tornam-se músicos de verdade.

— Por falar em música, como a senhora vê o movimento musical hoje em Minas Gerais, seja no erudito ou na música popular?

O movimento musical cresceu muito em Minas Gerais. O fato de existirem Departamentos de Música nas Universidades Federais do interior —como Ouro Preto e São João del Rei — é um imenso progresso. E hoje temos a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, de nível internacional. Já ocupa a posição de segunda orquestra brasileira e é recebida no exterior como uma grande orquestra. Essa dimensão alcançada pela Orquestra Filarmônica, com este nível de qualidade, que executa um repertório tão amplo, é um sinal de que o público também amadurece. Porém, não podemos nos descuidar da questão da formação dos músicos. Sem bons músicos, não há público exigente. Nós temos que contribuir para a formação tanto de músicos quanto de públicos. A Filarmônica é símbolo da perseverança existente em Minas — que produziu uma grande obra na área da música assim como já existia há muito na dança e no teatro. Veja os exemplos do Grupo Corpo e do Galpão. É muito diferente, claro, o caso de se construir uma grande orquestra. É necessário trazer músicos de todas as partes do mundo, a cidade ainda não os tem em número suficiente, embora muitos excelentes músicos mineiros integrem a orquestra. O fundamental é que a existência de uma orquestra do porte da Filarmônica em muito contribui para estimular quem estuda música. Muitas entidades e pessoas contribuíram e contribuem para que a música — em toda a sua diversidade, e não apenas a comercial — chegue às pessoas, especialmente à juventude. Não só a música, mas todas as artes precisam chegar a todas as pessoas. As artes são patrimônio da humanidade, e não só de uma elite. Só para mencionar alguém de nosso meio artístico, cuja contribuição nesse sentido é inestimável, não posso deixar de salientar o papel decisivo da pianista Celina Szrvinsk, como estimuladora de todo o ambiente.

— Tal qual o patrimônio histórico de Minas Gerais, existe no estado um patrimônio musical ainda desconhecido?

Sim, sem dúvida que ainda existe. De fato, esse patrimônio estava praticamente desconhecido até que foi iniciado lentamente um grande trabalho de recuperação na década de 70. Hoje existe muita coisa disponível para os regentes executarem. Um trabalho muito importante já havia sido realizado na década de 1940, pelo musicólogo Francisco Curt Lange, que lançou um alerta sobre a perda de um riquíssimo acervo musical em Minas Gerais. Depois, houve outro passo essencial com o surgimento do Museu de Mariana, criado com muita dedicação pela professora Conceição Rezende. Em São João del Rei, o compositor José Maria Neves, natural daquela cidade, apoiou as orquestras centenárias que ali sobreviviam tocando músicas do século XVIII, mas sem qualquer projeção. Outro projeto muito importante em relação à música colonial foi liderado pela Eleonora Santa Rosa e pelo então Presidente da Fundação, Fernando Pinheiro. Os dois criaram o projeto, conseguiram patrocínio e promoveram um grande trabalho de restauração, gravação e publicação do acervo de Mariana. De lá para cá, a situação mudou bastante. Hoje existem musicólogos muito bem formados no Brasil, por isso é mais viável e seguro recuperar esses acervos musicais históricos. Há universidades brasileiras interessadas, e muitos musicólogos se especializam no exterior. Em Ouro Preto, no Museu da Inconfidência, há um acervo muito bem cuidado. Enfim, houve muitos passos importantes nesse setor do patrimônio musical histórico e agora a situação é outra, bem melhor.

— Ha alguma diferenciação na FEA quanto ao ensino da música popular?

Na música popular Minas sempre teve muitos talentos que, em alguns momentos se reúnem e com sua criatividade amparada por boa formação, encontram o sucesso e a repercussão. Sempre é assim, seja na música popular ou na música clássica. Como aqui na FEA recebemos todos os que nos procuram para estudar música, nunca houve uma separação entre música erudita ou popular — o que pretendemos é dar uma boa formação musical. E muita gente faz as duas coisas. Não gosto de falar “música erudita”, parece um palavrão, não é? A música clássica e a música popular estão perfeitamente entrosadas aqui na FEA.


Não podemos nos descuidar da questão da formação dos músicos. Sem bons músicos, não há público. Nós temos que contribuir para a formação tanto de músicos quanto de públicos e ampliar cada vez mais esses públicos, pois a arte é patrimônio de todos.


— Os 50 anos da FEA vão ser comemorados em 2013?

Em relação ao ano do cinquentenário, 2013, temos intenção de fazer uma programação artística de mostras de vários setores artísticos, concertos, encontros. Precisamos de patrocínio e de parcerias para realizar tudo que está sendo planejado. Vamos também realizar algumas coisas importantes para a Instituição como um projeto de pesquisa, organização e classificação dos nossos acervos. É um trabalho essencial porque 50 anos representam muita memória e será tudo recuperado, como as nossas gravações e imagens. Devemos essa possibilidade a um projeto aprovado pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais). Dou muita importância a esse trabalho e pretendemos publicar um livro no fim do ano de 2013 que vai contar a história dos 50 anos da Fundação de Educação Artística.

Não podemos nos descuidar da questão da formação dos músicos. Sem bons músicos, não há público. Nós temos que contribuir para a formação tanto de músicos quanto de públicos e ampliar cada vez mais esses públicos, pois a arte é patrimônio de todos.

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