Cidades visíveis

Cidades visíveis

Euclides Guimarães

A experiência urbana traz consigo, desde sua origem, um problema peculiar de comunicação: falar para, e se fazer ouvir por anônimos. Tal problema cresce na proporção do crescimento da própria cidade e as soluções também se sofisticam nesse processo. Essa sofisticação crescente é a história das mídias.

Surgindo as cidades, o problema dos acordos pelos quais se destila a normalidade da vida cotidiana já não podia mais se resolver apenas no face a face da oralidade. Os bens materiais, distanciando-se das condições de sua produção, tornam-se mercadorias e passa-se a consumir coisas que não se sabe quem produziu ou mesmo como foi produzido. O comércio nasce e se perpetua como uma malha de acordos entre anônimos, na qual se destacam, por um lado, regras claras para que as lojas coabitem, civilizando a concorrência e o uso do solo; por outro, a visibilidade das informações, a necessidade de se fazer notar.

Também muito se sofisticam as trocas de bens culturais e valores imateriais. Os velhos feiticeiros, cada um com suas mandingas, dão lugar aos sacerdotes, que compartilham um saber uniformizado e também se vestem com uniformes. Em torno de rituais míticos as artes ganham palcos maiores, surgem grandes templos e a multidão. Para se fazer ouvir pela multidão e poder extrair dela ordem, suor e comoções os discursos e seus suportes ganham monumentalidade.

Mídias são mediadores técnicos para que a voz de alguém chegue a outro, considerando qualquer tipo de distância que separe os interlocutores, espacial ou temporal. A história do aprimoramento desses suportes confunde-se com a história da experiência urbana. Das cidades antigas, cujos registros sempre surpreendem pela profusão de edificações, artefatos e imagens, até as metrópoles contemporâneas, com toda a sua mensageiria, desenvolve-se uma inestancável busca por formas cada vez mais ampliadas de comunicação.

O que circula pela cidade está muito além do que o que brota nela. É de sua essência ser a confluência de coisas e gente provenientes de alhures. Some-se a isso o excesso de informações, a profusão de mensagens, sons, imagens e escritas diversas que fazem da cidade o locus das telas, o ponto de encontro de tudo o que vem de outros lugares. Imagem e som se combinam num delicado limiar entre caos e harmonia fazendo a cidade pulsar.

A mistura fragmentária de todos os discursos que se digladiam na busca por visibilidade se converte numa voz compósita, um burburinho. A metrópole cria seu próprio discurso: sua pulsação é sua voz. Cada cidade desenvolve um modo próprio de pulsar, cada uma faz seu timbre, seu ritmo, seu espectro de cores. O principal produto de tudo isso é o cidadão que se forma nesse ambiente de experimentação.

Malgrado ricas experiências urbanas anteriores, é com a modernidade que a grande cidade, convertida em metrópole, torna-se o habitat “natural” de um novo tipo de gente: o urbanoide. Para esse produto pensante de um mundo de telas repleto de coisas, mas, mais ainda, de imagens, ruas entupidas de placas, letreiros e ‘outdoors’, salas de cinema, galerias e shoppings são como templos sem deuses, movidos pela sedução da diversidade, da novidade, da mercadoria e dos estilos de vida.

Ali instaladas as mídias, muito mais que informantes, tornam-se formadores, escolas de fabricar urbanoides, moldando desejos, associando-os a produtos e a modos de usar. Através de uma ética incentivadora do sucesso e do consumo, esta floresta sígnica convoca cada um não apenas a viver entre telas, mas também a ser uma delas. Eis o efeito mais determinante dessa simbiose entre cidade e mídia que a modernidade elevou ao extremo.

Mas a modernidade vem, aos poucos, cedendo lugar a uma condição pós-moderna ainda mais complexa. Nela imperam novas formas de experiência mediada tecnicamente para as quais os limites territoriais deixam de ser limites. Falar de cidades é falar ainda de territórios, mesmo que naturalmente vocacionados ao que extrapola territórios, mas o que as novas mídias põem em cena é um gigantesco território virtual que, convertendo tudo de material ou imaterial em visibilidade, se assemelha a uma cibercidade. Por ela circula um tipo de ciberurbanoide cujos amigos, amores e anônimos úteis podem estar em qualquer lugar e, independente disso, estarão disponíveis para interações reais, em tempo real, visitáveis e dispensáveis por meros “clics”.

Disso resulta que os mediadores técnicos para a ampliação da comunicação humana, produto da necessidade de viabilizar e incrementar a organicidade da experiência urbana, agora se autonomizam fazendo brotar uma urbe extraterritorial. Obviamente a cibercidade planetária afeta e é afetada pela cidade física, que continua a fluir com sua cara multimidiática, mas como isso acontece? Dessa potente relação nos ocuparemos em breve.

Euclides Guimarães é sociólogo e professor na PUCMinas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) e na FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura).

A metrópole cria seu próprio discurso: sua pulsação é sua voz. Cada cidade desenvolve um modo próprio de pulsar, cada uma faz seu timbre, seu ritmo, seu espectro de cores. O principal produto de tudo isso é o cidadão que se forma nesse ambiente de experimentação.

 

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