Especial – O bom caminho

O bom caminho

Bê Sant’Anna é escritor, peregrino e pai da Beatriz. Em 2009 percorreu 830 km no Caminho de Santiago e, em 2013, percorreu mais de 2.500 km, saindo do Vaticano e unindo o Caminho de Assis ao Caminho de Santiago. Com dois livros publicados (Livro 8, em 2008, e V ente, em 2012), prepara o terceiro, com o título de Eu Caminho.

Por Bê Sant’Anna (texto e fotos)

No dia 30 de junho de 2013, há um ano exatamente, desci pela segunda vez a Rúa da Acibechería e cruzei o pórtico que dava acesso à Praza do Obradoiro. Lá, encontrei, emocionado, minha irmã, Gabriela, e o peregrino Ramiro Maia, que tomou um avião do Brasil pra me receber de surpresa na porta principal da Catedral de Santiago. Depois de três meses caminhando diariamente, era ali o destino final, a linha de chegada do meu objetivo traçado depois de atravessar três países.

Cheguei um dia antes de completar meus 40 anos. Foram centenas de cidades, depois de oitenta e oito dias de caminhada e mais de 2.500 km a pé. No dia 3 de abril, assisti a uma missa na Piazza de San Pietro, no Vaticano, na ascensão do Papa Francisco ao primeiro posto da Igreja Católica. No dia seguinte, saí caminhando rumo a Palombara Sabina — a primeira cidade que o Google Maps me indicava — rumo a Assis. Se não tivesse errado o caminho e andado cerca de 5 km a mais, eu teria percorrido apenas 37 km naquele dia frio na Itália. Caminhei quase 45km e cheguei já no cair do dia, quando iniciava a missa naquela pequena cidade, desconhecida pela maioria dos turistas que decidem visitar a Itália.

Foi assim: dia após dia, iniciava uma caminhada rumo a meu destino final, e encontrava pouso sempre na cidade que ficava mais próxima à média inicial de 36 km/dia. Trinta e quatro, quarenta, quarenta e dois, quarenta e quatro: a quilometragem variava e a altimetria também. O que não variava era a disposição hercúlea de seguir a qualquer custo. De seguir, “apesar de”.

Foram muitos “apesar de”: dores nos pés, dores nas pernas, dores na coluna, incômodos de toda sorte, temperaturas baixas, chuva intensa, vento inclemente. Incertezas. Sol intenso e quilômetros e quilômetros de ladeiras inacabáveis. Cães ferozes, serpentes, veados, raios, desidratação, rumos errados. Mapas desatualizados e horas infindáveis. Dias de medo intenso, dias de desesperança. Foram também muitos os pesares. Mas o peso de toda cruz pessoal fica pequeno quando, no Caminho, comecei a encontrar dezenas de pessoas que, primeiramente, vinham saber que peregrino brasileiro era esse que tinha decidido unir o Caminho de São Francisco de Assis ao Caminho de Santiago e percorrer mais de 2.500 km a pé. Depois, no particular, pediam: “Ora por mim, estou sem emprego”; “Reza por minha família, temos um problema que parece insolúvel”; “Pede por meu filho caçula, ele está gravemente enfermo”; “Caminha por minha filha, ela está viciada em drogas”.

Eu tirava a caneta e meu Moleskine da mochila de 9 kg e meio: — Qual é o seu nome? Qual é o nome da sua filha? E olhando nos olhos daquela pessoa sofrida eu dizia: fique tranquilo, vou caminhar e levar comigo a sua oração.

E, assim, não pude mais parar. Foram dezenas de pedidos, centenas de sorrisos, centenas de mãos abanando e sinais positivos de apoio. De transeuntes, de motoristas, de passageiros. Todos os tipos de terreno, todo tipo de clima. Dias de solidão absoluta e dias de regozijo profundo. Dias de choro compulsivo e dias de gargalhada efusiva. Ofertas de caronas, de cafés, de lanches, de almoços, de hospedagem e até de dinheiro. Dormi em monastérios, mosteiros, casas de acolhimento, conventos, albergues. Ainda existe muita gente que entende a importância da peregrinação, gente que sabe das questões místicas e míticas de empreender o Bom Caminho.

Da saída, com o Papa Francisco, à chegada, encontrando o escritor e mago Paulo Coelho, foram oitenta e oito longos dias do sagrado e do profano. Andei pelos relevos acidentados da Itália, encontrei matas fechadas e litorais escarpados. Passei por lindas praias francesas e vinhedos inesquecíveis, e por montanhas geladas e estradas que terminavam dentro de mim mesmo. Atravessei os Pirineus franceses e os navajos. Atravessei platôs, planícies espanholas, mágicas veredas e as florestas celtas. Aos que acreditam, tive a companhia, em alguns momentos, dos que já foram, mensagens de outras dimensões, revelações, clarividências e ajudas de anjos e santos. Foram tantas histórias e estórias que um novo livro está em curso: Eu Caminho.

Aos que desejam um modo verdadeiramente legítimo de conhecer um povo, um lugar, uma cultura, caminhar é uma excelente opção. Aos que esperam um exercício à altura, emagreci mais de 14 kg e meu percentual de gordura foi a 9%. Aos que esperam algo mais… Bem, a esses, digo: — Bom Caminho.

Para mim, o chamado para uma peregrinação, sem dúvida alguma, é também a declaração da Sagarana pessoal.

Fui buscar. Aprendi que um caminho de mais de 2.500 km se faz com apenas dois passos: o primeiro e o próximo.

O peso de toda cruz pessoal fica pequeno quando, no Caminho, comecei a encontrar dezenas de pessoas que, primeiramente, vinham saber que peregrino brasileiro era esse que tinha decidido unir o Caminho de São Francisco de Assis ao Caminho de Santiago e percorrer mais de 2.500 km a pé.

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