Guará, o lobo solitário

O Guará é considerado como vulnerável à extinção.

Fauna

Guará, o lobo solitário

Reportagem Rita de Podestá
Fotos Marcos Amend

O nome é de lobo, mas o porte é de cão. O Lobo-guará é da família dos canídeos, como cães, lobos, raposas, coiotes e chacais, e tem bastante potencial para ser um bom amigo do homem. Com a peculiaridade de ser considerado o maior canídeo da América do Sul, o Guará destaca-se, também, pela sua importância para a conservação e manutenção da fauna e flora brasileira, e por ser um animal tranquilo e solitário.

O nome científico do Lobo-guará é Chrysocyon brachyurus, o que quer significa “animal dourado de cauda curta”, enquanto Guará, nome que tem origem no tupi guarani, significa “vermelho”. As cores se misturam, deixando sua pelugem num tom dourado avermelhada. Já a parte interna de suas orelhas são brancas, e se movimentam como um radar atento aos sons e movimentos — conseguindo captar o mínimo ruído de suas presas. Pequenos roedores, aves terrestres e sapos dificilmente passam despercebidos pela sua audição e olfato. Curiosas são suas patas longas, parcialmente negras, como se usasse meias ou botas. Os pelos negros estão também no pescoço, que arrepia em situações de perigo e faz o lobo parecer ainda maior do que realmente é. Os filhotes possuem coloração diferente nos primeiros seis meses. Nascem bem negros com apenas a ponta da cauda branca. O que logo muda. Precoces, com apenas dez meses, atingem o porte de um adulto que poderá viver até os dezesseis anos.

Características que o tornam um animal esbelto e elegante, mas, também, o deixam muito ágil. Suas patas compridas facilitam o seu movimento nos campos, já que é um animal do cerrado, acostumado a andar em estradas e trilhas, onde há campos com baixa vegetação e ambientes abertos. As patas auxiliam, também, no momento da caça, quando pode dar exímios e eficazes saltos.

Vai o sol, vem o guará

O Lobo-guará possui hábitos noturnos que iniciam-se no entardecer. Durante o dia, descansa, mas não costuma eleger um ponto particular, deitando-se sempre em lugares diferentes. Seus hábitos são solitários, gosta de andar e caçar sozinho. A não ser no período do acasalamento, quando procura companhia, o que acontece uma vez ao ano. Por esse motivo, apresentam baixas densidades por toda a sua distribuição, até porque, gostam de demarcar grandes territórios para sua desejável solidão.

A relação das fêmeas com seus filhotes é de proteção. Assim como podemos observar nos cães, quando sente que algum perigo ameaça a cria, logo os esconde. Os filhotes mamam por cerca de dois meses e comem alimentos regurgitados pela mãe, como os pássaros. Depois, já estão quase prontos para a sua liberdade e para lutar pelo seu lugar.  Nesse momento, já não há proteção da mãe, prevalece o instinto. Adultos da mesma família disputam o território, os que vencem expulsam os demais, que vão procurar outros campos de cerrado.

Historicamente, os lobos-guará habitavam áreas de campos e cerrados da região central da América do Sul, indo dos limites do nordeste brasileiro, sudoeste Peruano, norte e leste da Bolívia e do Chaco paraguaio. No sul, ocorriam no Rio Grande do Sul, no norte e nordeste da Argentina, e em todo o Uruguai. Hoje, no Brasil, as áreas principais de ocorrência, são na região da Serra da Canastra, MG, e no Parque Nacional das Emas, GO. Existem alguns registros em áreas do bioma pantanal e de transição do cerrado e caatinga e do cerrado e amazônia. Com o tempo, o lobo começou a ser visto na mata atlântica, nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná. Principalmente em regiões que, com o desmatamento das florestas, se tornaram áreas mais abertas. Porém, sugere-se que esses habitats sejam alternativas para os lobos refugiarem-se devido à alta antropização, pois não é este o seu ambiente ideal.

Agricultor do cerrado

Além de ser um animal noturno, estudos indicam que ele também modifica seus picos de atividade com relação à umidade do ar e temperatura. Quando está frio, nublado ou depois de precipitações, é possível observá-los procurando comida ou patrulhando seu território, mesmo que ainda seja dia. A tarefa de vasculhar a região pode ser trabalhosa, pois seu habitat tende a ser bem extenso. A espécie é territorialista, e utiliza os odores da urina e das fezes, mais sensíveis ao olfato deles do que aos nossos, para evidenciar sua presença e demarcar seu território. Outra forma de sinalizar sua presença é por meio de um latido, prolongado e profundo, bem diferente do uivo típico dos lobos europeus e americanos. Porém, infelizmente, cada vez possuem menos extensão de terras para se impor, uma vez que, seu habitat principal, o cerrado, corre sérios riscos.

O Guará não só de adaptou ao bioma do cerrado, como o cerrado se adaptou a ele. Trata-se de um animal onívero, que se alimenta de frutas e pequenos animais, como gambás, roedores, aves, cobras e lagartos, porém sua fruta preferia é conhecida como “lobeira”, uma fruta típica do cerrado. O fruto da lobeira faz bem ao animal, pois age como um vermífugo natural que impossibilita complicações renais. Mas a relação é de troca, pois, ao evacuar, o Lobo-guará promove a dispersão das sementes, muitas vezes a quilômetros de distância de onde o fruto foi apanhado. Por serem consumidas de forma inteira, as sementes passam pelo seu trato digestivo e saem prontas para germinar na terra. Isso confere ao lobo o papel de agricultor do cerrado. Sendo assim, preservar o Guará, significa preservar, também, a flora do cerrado.

Entretanto, ele não vive só de frutas. Mesmo com as mudanças de seu habitat, o lobo não abandonou sua atividade de caça. Paciente, pode passar horas com o ouvido e nariz bem apurados até encontrar sua presa. Num primeiro sinal, fica imóvel até ter certeza da localização do animal. Ao avistá-lo, lança as enormes patas semi negras no ar e mergulha num bote. Quando não é certeiro, se esconde, mas não por medo. Sábio, possui outra estratégia: bater as patas no chão freneticamente para que as presas corram, e ele possa demonstrar sua agilidade dando o bote em plena fuga. Para caçar cobras é diferente, logo ao avistá-la se aproxima e bate as patas no chão diversas vezes, acertando-as, até que fique tontas e vulneráveis.

A concentração diante da presa é tanta, que o fotógrafo Marcos Amend, 46 anos — colaborador especial desta Sagarana e autor do ensaio fotográfico que ilustra essas páginas — em uma das suas tantas expedições fotográficas pelos biomas brasileiros, ficou bem próximo do animal enquanto o fotografava. “Fui basicamente ignorado pelo lobo durante os 23 minutos que passei fotografando-o. Ele estava muito entretido com sua atividade de caça, o que permitiu uma aproximação bem maior do que eu esperava. Eu esperava que, ao me ver, ele fugisse. Mas por um presente do destino, naquele dia ele resolveu não se importar comigo e se comportar como meu modelo fotográfico.” O curitibano erradicado em Minas, que alia a fotografia à projetos de conservação, já teve oportunidade de registrar os mais remotos cantos do Brasil, além de tantos outros países, e ainda sim, conta com entusiasmo sobre seu encontro com a espécie. Afirma que é difícil encontrar um fotógrafo de natureza que não gostaria de fotografar o Lobo-guará. Porém, para tal, é preciso, além da técnica, paixão, planejamento e muita paciência. Vale dizer que um pouco de sorte também ajuda.  O resultado pode ser muito mais do que uma boa foto, mas a oportunidade de presenciar cenas cada vez mais raras da fauna brasileira. “Me deparei com um lobo-guará em um fim de tarde com uma luz fantástica, em pleno comportamento de caça. Só a observação daquela cena teria valido a viagem”, conta o fotógrafo.

Desconfiado, mas curioso

O Lobo-guará é sim um ágil caçador, porém é vitima de um equívoco. Por carregar o título de lobo em seu nome, é tido como espécie ameaçadora e perigosa, enquanto é tímido, quase medroso. Além disso, muitos fazendeiros o acusam ser “ladrão de galinhas” e os agridem indiscriminadamente.

Apesar de levarem a culpa pela morte das aves domésticas, outras espécies também podem ser responsáveis por tal delito, como furões, cachorros-do-mato, gatos do mato, lagartos, cobras e gaviões, dentre outros. De acordo com dados do “Programa para a Conservação do Lobo-Guará – Lobos da Canastra”, menos da metade dos ataques de aves na Serra da Canastra foram provocados pelo Lobo-guará. Porém, estudos avaliaram que os moradores acreditam que a espécie é ruim para a região — o que levou ao triste índice de seis animais abatidos em conflitos com humanos num período de quatro anos.

Mas o Guará não é um lobo mau. Que ele não é lá de muitos amigos, é verdade. Têm até um pouco do mineiro, desconfiado, mesmo sendo, também, bastante curioso. Mas isso não o torna ameaçador, apenas um solitário, uma vez que não anda em bandos como outros lobos americanos e europeus, de quem nem é parente. A espécie gosta de vagar pelo cerrado, e andar em trilhas que os levam a beira de um córrego, para matar a sede na água das nascentes. Além disso, são de grande ajuda para fazendeiros, pois se alimentam de roedores, que muitas vezes se tornam pragas que atacam plantações e sacas de grãos. Moradores de regiões mais isoladas do cerrado também deveriam agradecer. O Guará garante o controle de serpentes nas redondezas das casas. Isso, sem falar da sua relação direta na conservação da biodiversidade do cerrado.

O “Parque Nacional da Serra da Canastra”, sua casa preferida em Minas Gerais, delimita uma área de cerca de 200 mil hectares. Criado em 1972 para proteger uma região de extrema importância ecológica, possui muitos moradores em seu entorno, devido sua grande extensão. Sendo assim, a proteção integral da área é tarefa complexa e precisa contar com a ajuda da população. Uma coisa é certa, pelo menos ainda há lugar para todos viverem em plena harmonia.

Vulnerável, mas por quando tempo?

Por esses e outro motivos, o Lobo-guará é considerado no Brasil, pela ICMBio (Instituto Chico Mendes de Proteção a Biodiversidade), como vulnerável à extinção. Com exceção de algumas regiões, como no Rio Grande do Sul, onde já é espécie considerada ‘Criticamente Ameaçada’, assim como no Peru e Uruguai. Na Argentina, Paraguai e Bolívia, se encontram as melhores populações fora do Brasil. Ainda assim, a espécie pode ser considerada ‘Ameaçada’.

Os fatores mais relevantes e preocupantes são o crescimento das cidades, o aumento de áreas agrícolas e de pastagens e a antropização — que aceleram a devastação do cerrado. A perda e a modificação desse ambiente geram sérios problemas para a vida dos lobos, e de tantas outras espécies. Não só diminui-se o seu território para caçar e sobreviver, como aumenta outros riscos, dentre eles o de atropelamentos. O cerrado é um bioma cortado por várias estradas, e cada vez mais os lobos precisam cruzar rodovias dentro de seu território. Por este motivo é grande o número de atropelamentos em regiões de SP, MG e GO, e poucos são os motoristas que param para ajudar, uma vez que temem o animal. O encontro com cães domésticos também é uma preocupação, pois estes podem transmitir doenças as quais os lobos nunca tiveram contato.

Amend, como profissional das lentes e admirador do Guará, faz sua parte na esperança de ver o animal protegido. Afinal, para ele a fotografia é uma aliada importante no registro de espécies e seu comportamento. Além disso, sua própria experiência mostra como a convivência homem-animal é possível, desde que haja um respeito pacífico. Já o lobo, também faz a sua parte, ao viver num esforço constante de sobrevivência. “O que mais me impressiona na espécie é a sua capacidade de continuar sobrevivendo em um ambiente tão maltratado como o cerrado”, afirma o fotógrafo.

O lobo amigo do homem

Felizmente, o Lobo-guará nem sempre é mal recebido. No Parque Natural do Caraça, em Catas Altas, MG, ele encontra paz na natureza exuberante e em meio aos humanos curiosos. No parque há um Santuário religioso e um ecológico. Cachoeiras, cascatas, picos, grutas e cavernas compõem a região. Em meio à tamanha beleza, está um complexo arquitetônico de imenso valor: o Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens e o antigo colégio setecentista, tombado pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Local o qual a espécie não só frequenta como é atração turística.

Tudo começou em 1982, quando os funcionários do Santuário começaram a perceber que algumas lixeiras apareciam reviradas pela manhã. Desconfiaram de cachorros, porém o Padre Tobias, superior de então, não concordou — afinal, os cachorros não subiam a serra. Mais atentos, descobriram se tratar do Lobo-guará, que hoje, não precisa revirar lixo, pois é muito bem recebido pelos moradores, funcionários e turistas do local.

Apenas um casal de lobos habita o entorno do Santuário, e só são vistos juntos nos meses de abril e maio, época de acasalamento. Porém, frequentemente os lobos sobem até a Igreja, onde comem juntos na bandeja de alimentos deixada para eles. Algumas épocas aparecem em família — uma fêmea já foi vista empurrando um filhote escada acima. Cinco exemplares foi o máximo registrado: três filhotes comendo na bandeja; a fêmea vigiando da escada enquanto o macho aguardava nas palmeiras. A prática de alimentar os lobos no Caraça, apesar de alterar seus hábitos de convívio, não prejudica seu hábito de caça, e o Guará não marca hora para aparecer. Porém, as visitas dos lobos são atrativos do local, que aproveita os momentos de espera para proporcionar aos hóspedes e turistas informações sobre o animal e a região, além de lições sobre educação ambiental.

Ações como essa são importantes, pois divulgam a possibilidade da convivência pacífica com o Guará, e ajuda a mantê-lo fora da lista dos animais ameaçados de extinção.

Conhecer para preservar

Uma campanha elegeu 2015 como “O Ano do Lobo”. A iniciativa foi resultado de uma ação em prol do envolvimento da sociedade na conservação dos Lobos-guarás, uma parceria da “Sociedade de Zoológicos e Aquários do Brasil (SZB)” — por meio de seu coordenador, Rogério Cunha, do Centro Nacional de Mamíferos Carnívoros/CENAP – ICMBio —, com o “Programa para a Conservação do Lobo-Guará – Lobos da Canastra”. O componente educativo do programa é o projeto “Sou Amigo do Lobo”, que busca informar e envolver de toda a sociedade (não só os moradores da Serra da Canastra) na conservação da espécie. Na Serra da Canastra já são 10 anos de pesquisas acumuladas, além de ações práticas, direcionadas à conservação da espécie na região.

O Lobo-guará pode não ser o melhor amigo do homem, mas está longe de ser um inimigo. Pelo contrário, é o homem que o ameaça ao contribuir para a destruição do seu habitat. Porém, nem tudo está perdido. Cada vez mais pessoas se conscientizam e dedicam-se à preservação de importantes espécies da nossa fauna e flora, e nessa luta, valem os pequenos e os grandes esforços.

Espera-se que o ano do lobo seja todos os anos, ou que tal campanha nem seja necessária. O importante é reconhecer a interdependência entre os seres vivos e entre estes e nossa imensa riqueza natural —  afinal, preservar um é preservar o outro. Há espaço para todos. Basta cada um fazer a sua parte. Amend espera que suas fotos possam inspirar tais ações e que cada um perceba o seu papel. “Muito pode (e precisa!) ser feito pelas pessoas. Dedique mais do seu tempo para visitar nossos parques, conheça melhor nossas paisagens, plantas e bichos. E aumente suas chances de ganhar um presente da natureza, como esse imenso privilégio que tive de fotografar um lobo-guará caçando em um pôr do sol.” O Lobo-guará, o cerrado e toda a natureza, agradecem.

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