Turismo de Base Comunitária – Capivari

Que todos sejam bem-vindos

Gerais adentro, vários são os povoados tradicionais que buscam, na prática do turismo de base comunitária, uma nova alternativa para o desenvolvimento regional. No Alto Jequitinhonha, os vilarejos, localizados em meio a belas paisagens naturais, compõem um núcleo vigoroso de cultura popular. Ao abrir as portas de casa para os visitantes, as famílias aumentam renda e qualidade de vida, além de proporcionar a quem chega, uma oportunidade única de vivenciar os seus costumes da prosa na beira do fogão a lenha ao contato direto com a natureza. 

Reportagem Carolina Pinheiro
Fotos Tom Alves

No alto dos campos rupestres da Serra do Espinhaço, o pequenino vilarejo desponta integrado ao Pico do Itambé. Com 2.002 metros de altitude, o marco referencial do sertão mineiro irrompe pradarias recortadas por trilhas abertas para a prática do ecoturismo na região. Interior adentro, a quilômetros do asfalto, uma igreja pequerrucha dá o sinal na estrada. A construção modesta, isolada do casario que remonta ao século XVIII, é a porta de entrada de Capivari, povoado pertence ao distrito de São Gonçalo do Rio das Pedras, município do Serro. O arraial que se assemelha a um cotovelo — duas ruas, uma curta, outra comprida, cruzam-se por entre travessas ajardinadas — é pioneiro no desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária (TBC). A promoção da modalidade de receptivo de inclusão social e troca de experiências se tornou uma importante fonte de renda para os moradores, pouco mais de 400.

O modelo de gestão se difere do convencional por incentivar a autonomia da comunidade na formulação de planos estratégicos durante a execução do projeto. Os habitantes, que abrem as suas casas para os turistas, são os responsáveis pelo sucesso do empreendimento, pautado em valores essenciais como a simplicidade e o contato direto com as pessoas e a natureza. Os traços rústicos e originais da cultura popular, em Capivari, serviram de inspiração para Marcus Pavani, diretor da agência Andarilho da Luz, implantar o Turismo de Vilarejo no local. Entre os benefícios da iniciativa estão o pagamento imediato dos proventos ao proprietário associado e a valorização do roteiro, destacado pela vivência mais autêntica oferecida aos viajantes.

Capacitação dos moradores

Em 1999, uma parceria entre a agência e as famílias residentes resultou no mapeamento das demandas e na capacitação dos moradores para a criação das pousadas domiciliares. O principal objetivo da ação voluntária, coordenada por Pavani, era o de aumentar a qualidade de vida da população. “Não estabelecemos critérios. Ouvimos o nosso coração e começamos a agir. Chegamos lá em uma época delicada. Muitas famílias passavam por dificuldades de subsistência, não tinham acesso a recursos básicos como saúde e educação”, afirma. Passados 14 anos desde a instalação da economia solidária no lugar, o trabalho continua a ser realizado de forma coletiva. “Todos participam dos ciclos, que são definidos de acordo com as condições de cada momento”, diz.

Hospitalidade mineira

O maciço rochoso do Espinhaço é abrigo de um ecossistema reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como patrimônio da biosfera. A diversidade da fauna e flora endêmicas atrai adeptos da vida ao ar livre o ano inteiro. Montanhas, cachoeiras e campinas cobertas por sempre-vivas, quaresmeiras e bromélias, espécies típicas do Cerrado, compõem um cenário convidativo, ideal para quem quer fugir do estresse dos grandes centros urbanos. Na região marcada historicamente pelo garimpo do ouro, diamante e cristais; pela extração de flores; e pelo tropeirismo, a acolhida do povo hospitaleiro é o ‘ingrediente’ a mais, que conquista os visitantes. Na beirada do fogão a lenha, na varanda das casas, na porteira da horta cultivada no quintal, todo o canto é lugar para esticar a boa prosa. Os costumes e o jeito de ser tradicional dos rincões realçam a experiência dos viajantes. A dinâmica enriquecedora do turismo de vilarejo é o diferencial da modalidade.

Pousada domiciliar

Em uma alameda larga de Capivari, a última casa, do lado direito, pertence a Genésio da Cunha, um dos representantes da comunidade. O homem alto, de olhar macio e fala certeira, recebe turistas desde o início do projeto, que mudou a vida de sua família. “Lá por 2000, eu tava muito apertado. ‘Trabaiava’ o mês todo e não arranjava um dinheiro. Tinha que ‘comprá’ fiado porque não tinha pra ‘pagá’. Eu ficava muito triste aqui com a minha esposa”, diz. Cunha é casado com Maria Aparecida do Nascimento. O casal tem três filhas: Taís, de 14 anos; Tatiele, de 12; e Taciane, de 9. “Aí, eu conheci o Marcus e ele começou a conversar comigo: —“Ó Genésio, eu vou trazer umas pessoas aqui pra sua casa.” Na minha casa não tinha quarto, banheiro, nada. Eu falava: — “Mas como é que eu recebo? ” Ele dizia: “Você arruma as coisas devagar.” ‘Trouxe as pessoa’, que pagavam direitinho. Aos ‘poco’, fui ‘ajeitano’ a casa”, relata imerso em suas memórias.

Acomodações aconchegantes

Hoje, a pousada domiciliar de Cunha conta com acomodações aconchegantes, construídas exclusivamente para os hóspedes. “Depois de uns ‘ano’, eu comecei a fazer travessia com o Marcus. Virei guia de grupos. Eu senti firmeza na empresa, no jeito deles ‘tratá’ a gente. Ele passou a ‘vi’ com as ‘pessoa pra subi’ no Pico”, conta. O turismo trouxe uma nova perspectiva para os habitantes do povoado. “A gente aprende muito com quem chega. Ouço o pessoal que vem aqui em casa. Eles têm ideias, são ‘solidário’. Quando a gente tá com dificuldade, tem hora que não é só o dinheiro não. Às vezes, uma palavra amiga ajuda demais. Se a pessoa tá ali descalculada, não tá sabendo o que faz, e chega alguém com aquele carinho, levanta a autoestima. ‘Nóis ficamo’ muito felizes de ‘escutá e temo tempo pra pensá’ em outras ‘alternativa’” afirma.

A tradição que gera inclusão

A prática do TBC no arraial, localizado a 325 quilômetros de Belo Horizonte, região norte do estado, rendeu a Andarilho da Luz, em 2003, o prêmio SESC UNA de turismo com responsabilidade social em Minas Gerais; além do troféu Voluntário das Gerais, concedido pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG). Situado no perímetro que se estende de Diamantina ao Serro, Capivari se transformou em vilarejo modelo para o segmento. Pavani esclarece que as pousadas domiciliares são as portas de entrada de uma comunidade. “A essência do conceito, ou seja, a relação mais humana entre o visitante e os moradores, é o segredo para o sucesso da experiência.”

Uma das chaves para o desenvolvimento do TBC no Alto Jequitinhonha é tradição oral do povo, particularidade que fortalece os laços e encanta o forasteiro. O dedo de prosa que se alonga entre pais, filhos e amigos em rodas de causos e viola integra o turista rapidamente aos hábitos locais. Na roça, descrevem os moradores, as conversas são sempre regadas pelo inseparável café ou pela cachaça artesanal, produzida nas cercanias de Milho Verde, distrito que fica a 15 quilômetros de Capivari. Quitutes caseiros como o pão de queijo e as broas de milho acompanham a bebericagem. A gastronomia regional é outro destaque do roteiro. Todas as refeições — feitas a partir de receitas típicas — são oferecidas nas pousadas. Não há restaurantes convencionais no lugarejo.

Sobre a terra de natureza suntuosa, o potencial ecoturístico foi amplamente explorado. Nos arredores do vilarejo, o Parque Estadual do Pico do Itambé guarda recantos de beleza singular. Capivari foi erguido na divisa de duas importantes bacias hidrogáficas, as dos rios Doce e Jequitinhonha. São incontáveis as nascentes e os cursos d’água a formar frondosas cachoeiras como a do Tempo Perdido, do Amaral e de Coqueiros.

A polêmica sobre o uso da terra

Na região composta por comunidades extrativistas, a criação do Parque, em janeiro de 1998, causou impacto imediato na vida das pessoas. Em Capivari, o depoimento dos moradores incide sobre questões cruciais como a manutenção da economia de subsistência dos povos tradicionais. Os trâmites acerca da regulamentação de Unidades de Conservação gera polêmica há décadas no Brasil.

O período anterior à consolidação do turismo, na vila, foi de muitas dificuldades para as famílias. Algumas ainda passam necessidades. Cunha enfatiza que não há estímulo por parte do Governo. “Dos gestores, não tem apoio. As ‘pessoa’ daqui ‘precisava’ de uma orientação. Eu vejo assim, o turismo gera renda, mas tem gente que não consegue ‘acompanhá’. Dos ‘morador’ daqui de perto, são poucos os que se ‘concentra’ no turismo, então ficam ‘isolado’. O bom seria uma alternativa que melhorasse pra todos, que fizesse o trabalho ‘circulá’. Se tem 10 ‘trabaiando’, às vezes, ‘sobra’ 20 que não consegue se ‘articulá’, pois não têm auxílio”, diz.

Segundo Renato Ramos da Silva, biólogo e coordenador de projetos na Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi), o conflito surge da falta de diálogo. “A proposta de UC, em si, sem uma relação com os moradores, já começa fragmentada”, afirma. Os órgãos governamentais proíbem o manejo da flora dentro dos limites das UCs sem um plano que dê a contrapartida para quem precisa dos recursos naturais para sobreviver. “As ‘pessoa’ ficam perdida. Onde autorizam ‘plantá’ é numa terra que não produz mais. E nas terras onde dá pra ‘plantá’, já não pode mais, diz que tem que ‘preservá’. Então, cuidar da natureza é importante, mas tem que dar outras ‘escolha’ pra população”, reitera Cunha.

Outras janelas para o amanhã

Embora a área do Parque seja pequena, 4.700 hectares, a comunidade reivindica por melhores condições de vida. Cunha pondera sobre a criação de um plano global, que inclua a todos. “Eu sou apaixonado pelo lugar que eu moro. Sonho, para os meus filhos, com um Capivari tranquilo como é, mas com mais oportunidade, comunicação, educação. Assim, eles ‘trabalha’ e permanece na vila. Os jovens precisam de chance para um futuro melhor aqui, no lugar deles, no meio rural”, diz.

Com a inserção bem sucedida do turismo no local, novas propostas surgem com a finalidade de ampliar o campo de ação dos moradores do Espinhaço. Felipe Marcelo Fernandes Ribeiro, turismólogo e proprietário da operadora Serra Sertão, é um dos idealizadores do Corredores do Desenvolvimento. O projeto, promovido por organizações governamentais e não governamentais, universidades e empresas particulares, tem como meta o incremento social e econômico dos vilarejos que pertencem ao Mosaico de Unidades de Conservação (UCs) do Espinhaço: Alto Jequitinhonha — Serra do Cabral. “Criamos roteiros integrando as comunidades do circuito do diamante”, relata.

A trilha chamada Travessia dos Parques contempla Capivari. Ribeiro comenta que as etapas incluem implantação de hospedagem domiciliar, treinamento de condutores — cerca de 60 moradores —, mapeamento de caminhos e oficinas de capacitação. São mais de 100 quilômetros de travessia, passando por 11 comunidades. O roteiro percorre três Parques Estaduais, um Nacional, um Municipal e uma Área de Proteção Ambiental (APA). “O trabalho irá gerar melhorias para a região em todos os sentidos. O processo é longo, mas próspero”, comemora.

O jeito de ser simples

O Brasil é um país de contornos múltiplos, de universos particulares que guardam, em seus pequenos detalhes, a originalidade de um povo plural, que traz nos hábitos a marca de uma história plena de saberes e fazeres. No território de dimensões continentais, o potencial para a expansão qualitativa de projetos turísticos é deveras peculiar. Perspectivas inovadoras, que exploram as riquezas naturais e culturais presentes nos cantos diversos do país, contam com um forte elemento de transformação social. Em Minas Gerais, os vilarejos se espalham por entre vales e montanhas, revelando costumes tradicionais e abrindo uma janela para o desenvolvimento sustentável das comunidades afastadas.

A experiência do turismo de inclusão em Capivari, com base na troca de informações entre visitantes e moradores, é um exemplo de conquista que merece atenção. Trata-se de uma prática que agrega valor ao conceito de ecoturismo. O instrumento de mudança tem na fórmula a simplicidade, fator que amplia a possibilidade de crescimento mútuo, uma vez que aproxima as pessoas, preserva o meio ambiente e impulsiona as economias regionais.

Serviço

Agência de Ecoturismo Andarilho da Luz
(31) 3494-2727
caminhadas@andarilhodaluz.com.br
www.andarilhodaluz.com.br

Pousada Domiciliar, Capivari
Genésio da Cunha
(31) 9668-4323

Serra Sertão Turismo Receptivo
 (38)3531-9726/ 9941-0044
serrasertao@gmail.com

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